Daqui não saio, daqui ninguém me tira
A emenda constitucional que propõe a reeleição ilimitada do presidente e dos detentores dos demais cargos públicos na Venezuela foi aprovada no referendo realizado ontem com 54,36% dos votos. A eleição definiu que qualquer pessoa já no poder poderá disputar uma reeleição indeterminadamente. Era tudo que Hugo Chaves queria. Ele pode agora se candidatar para um terceiro mandato consecutivo em 2012, e por aí vai.
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"Verão do caudilho
Quando Chávez perdeu o referendo para a presidência perpétua em 2007, ele disse que aceitava. No governo brasileiro, os que o defendem disseram que isso era prova de sua convicção democrática. Era um recuo estratégico. Ele volta hoje às urnas com a mesma proposta e o mesmo método de intimidação da oposição. Tem chance de ganhar, mas não importa: se perder, vai insistir até vencer.
Hugo Chávez não é democrata, por mais eleições que promova. Ele faz uma eleição por ano, é um governo plebiscitário que toma de assalto as instituições, ameaça a imprensa, encurrala a oposição, cria milícias armadas e usa os cofres públicos como caixa de campanha. Chávez é a marca do retrocesso que a América Latina vive num momento que poderia corrigir seu passado que oscila entre as ditaduras, as breves democracias e o caudilhismo.
Nos dez anos em que governa a Venezuela, Chávez conseguiu uma proeza: enquanto o petróleo vivia a sua mais longa e espetacular disparada de preços, a produção caiu e a empresa estatal ficou mais endividada. A queda de um milhão de barris/dia de produção em época de boom é consequência direta da politização da PDVSA. Depois da greve de 2003, o governo Chávez demitiu os técnicos mais qualificados da companhia e inchou a máquina com chavistas. Na última eleição, o presidente da empresa de petróleo disse, em local público, que para trabalhar lá teria que ser “vermelho, vermelhinho”: a cor do partido de Hugo Chávez.
É um tempo desperdiçado, em que o país poderia ter dado um grande salto e reduzido de forma permanente os muitos males sociais do país. Houve investimentos nos “barrios” (favelas), mas muito menos do que poderia, pelo salto das receitas fiscais do país com o petróleo. Houve políticas de transferências de renda aos mais pobres, mas de forma personalista, e não como política de erradicação da pobreza extrema. Houve instalação de mercados populares com comida mais barata, mas sua hostilidade em relação às empresas foi tão grande que o país vive em desabastecimento. O dinheiro transferido foi corroído por uma inflação que superou 30%. Este ano, os economistas independentes estão prevendo que o PIB pode contrair 2% e a inflação chegar a 40%. Nestes dez anos que poderiam ser de progresso, a violência aumentou: o número de homicídios quase triplicou.
Com o uso sistemático da máquina pública como plataforma de propaganda, com a intimidação dos opositores e a apropriação das instituições, ele foi demolindo as virtudes de um estado democrático. Aumentou o número de juízes da Suprema Corte para dominá-la, mudou o Conselho Nacional Eleitoral para subjugá-lo, cassou a concessão da emissora de televisão RCTV como uma das formas de ameaçar a imprensa. Quando perdeu as eleições em Caracas, em novembro, ele assaltou o governo regional: em dez dias Chávez encampou todas as 93 escolas da rede metropolitana, 30 hospitais, 22 cartórios e o canal Ávila TV. No início do ano passado ele já tinha passado o comando da Polícia Metropolitana para o Ministério do Interior. O golpe do referendo que faz neste fim de semana é para acabar com outro pilar da democracia: a alternância no poder. Sem ela não há democracia. Presidência perpétua é ditadura. Ele tem dito que está preparado para ficar até 2030 ou no mínimo mais dez anos.
O chavismo é o caudilhismo autoritário que a América Latina já conheceu no passado. E Chávez tem alunos diletos que são financiados por ele e seguem seus métodos na Bolívia e no Equador. Agora seus financiados terão que enfrentar a escassez fiscal de um período de queda do preço do petróleo. Na Colômbia, seu inimigo Alvaro Uribe se iguala a ele neste ponto: também sonha com presidências intermináveis. Na Argentina, os Kirchner não estão em condições de pensar em terceiro mandato, mas continuam o desgoverno que reforça a tendência do país ao declínio.
Países da região produtores de metais, commodities agrícolas e energia poderiam ter se preparado melhor para os tempos difíceis atuais. Poucos fizeram isso. Alguns, como a Venezuela e a Bolívia, perderam tempo e investimento na politização excessiva, na polarização do país.
O Brasil tem a vantagem de se sair melhor quando comparado com os vizinhos trapalhões. Aqui, a ideia do terceiro mandato veio e foi embora. Tomara que definitivamente. Mas a semana passada foi bem um retrato dos nossos desvios: o presidente consumiu todo o tempo no palanque, fazendo coincidir encontros municipalistas com aniversário de partido, política contra a crise com distribuição de benesses pré-eleitorais. A ministra-candidata segue o que seu mestre mandou e ensaia seu personagem eleitoral. O erro do presidente sobre a estatística do analfabetismo em São Paulo — gritado diante de três mil prefeitos — foi tão absurdo que, com métodos orwellianos, o Palácio do Planalto corrigiu na transcrição do discurso. O uso da máquina para propaganda extemporânea foi tão abusivo, que só ficou menor diante dos absurdos cometidos pelos outros poderes: o Congresso em seu pântano, o STF em seu delírio de soltar condenados numa interpretação exótica do que seja o direito de defesa.
Hoje é mais um dia de ver a insensatez da Venezuela. Se Hugo Chávez perder, ele vai dividir mais o país, ameaçar mais os opositores e tentar de novo adiante. Se ganhar, dará outro passo para o totalitarismo. No Brasil se pode, ao menos, torcer para que os excessos das instituições sejam corrigidos pela própria democracia."