Desabafo de um professor


Recebi esse e-mail de uma amiga professora. É uma carta-desabafo de um professor da Rede Pública Municipal do Rio de Janeiro dirigido a Cláudia Costin que hoje é Secretária de Municipal de Educação na capital.
Ao contrário do que alguns possam pensar, as reflexões são pertinentes para professores de vários municípios, estados e da rede privada também.



Prezada Cláudia,Sou funcionário do município do Rio, professor de Ciências.Tenho este cargo por mérito próprio, por passar em um concurso, há quase 5 anos - não tenho cargo por indicação política.
Li uma matéria com uma entrevista sua nO Globo, dia 08 de novembro de 2008, página 18.Na ocasião, algumas frases e propostas me chamaram a atenção. Tanto pela inocência quanto pela maldade das mesmas. Gostaria de, mui respeitosamente, discutir alguns pontos.
Vejamos...

1 - Você diz que pretende "investir na qualificação de professores, que poderão ganhar computadores portáteis". Eu agradeço muito o computador, porque estou precisando, pois o meu pifou. Mas isso, siceramente, não creio que seja investir na qualificação do professor. Já tive a oportunidade de escrever sobre isso por aqui, quando da mesma compra pelo Estado. Tenho um amigo que ficará com 5 computadores portáteis em casa e não sabe o que fazer com tantos. Ele e a esposa são professores, ambos do Estado e da prefeitura do Rio. Já tinham um, ambos ganharam do estado e ambos ganharão da prefeitura.
Professores, cara futura secretária, querem salário decente. Com ele podem comprar seus próprios computadores. E muitos já o fizeram, pois o preço baixou bastante. Eu mesmo ia comprar um - como eu disse, o meu pifou - mas não vou. Estou esperando ganhar. Mas preferia um bom aumento de salário para comprar o que eu próprio escolhesse e ainda aumentar minha renda.

2 - Você faz uma pergunta: "Por que uma cidade que tem tantos mestres e doutores de qualidade não consegue fazer um Ideb compatível com os de países desenvolvidos? ". O Demétrio Weber já respondeu, mas eu insisto em te responder esta pergunta também. E o principal motivo é simples: porque mesmo sendo mestres ou doutores de qualidade, temos que trabalhar em dois, três, quatro ou mesmo em cinco lugares diferentes pra poder somar renda e ter um salário "compatível com os de países desenvolvidos" !!! Sem contar as condições em que trabalhamos, secretária, que nem de longe é "compatível com os de países desenvolvidos" . A pergunta seria ao contrário: "por que não tratamos como os países desenvolvidos os nossos tantos mestres e doutores de qualidade?".

3 - Por fim, sua maior pérola, a frase "Quando um aluno é reprovado, é sinal que o professor falhou". Fico muito muito muito apreensivo que uma pessoa que tenha este pensamento venha a coordenar a maior rede municipal da América Latina. Pra facilitar o entendimento da minha lógica - que pode ser muito profunda pra quem nunca entrou numa sala de aula do ensino fundamental de uma escola encravada numa favela - farei um paralelo com o médico. Imaginemos uma pessoa que desde que nasce não tem cuidados médicos, não se cuida, não faz exercícios, não se alimenta direito, bebe, fuma, é sedentário, estressado etc. Essa pessoa passa mal e vai ao médico. O médico receita remédios e faz uma série de recomendações dizendo que, se não seguir, ele pode morrer. O doutor marca uma nova consulta para daqui a alguns meses, para verificar o seu progresso. A pessoa não fez nada do que o médico receitou e ainda faltou à consulta. Passa mal de novo e vai ao médico. O doutor dá uma bronca, faz as mesmas recomendações, passa as receitas novamente, marca uma nova consulta. O paciente, mais uma vez (ou muitas vezes), não faz o que o médico manda e morre.O médico falhou?Pela sua lógica, "quando um paciente morre, é sinal que o médico falhou".Oras... garanto que neste caso a senhora achará que o culpado é o paciente, já que o médico fez de tudo para salvá-lo...Será que o professor também não o faz?Mas vamos examinar o nosso caso. Por partes e desde o início.


a) quando a criança foi concebida, quem falhou foram os pais, que souberam gozar mas não evitar a gravidez;
b) quando a moça estava grávida falharam ela, o pai, a família e o Estado (assistência social, hospitais), que não deram a ela e ao feto um pré-natal decente - ou mesmo nenhum pré-natal;
c) quando ele nasceu e era um bebê cheio de necessidades falharam os pais que colocaram no mundo uma criança sem ter condições mínimas de criá-lo e falhou o Estado (segurança alimentar) em não dar a ele o que necessitava para seu pleno desenvolvimento;
d) quando ele era uma criança falhou o Estado mais uma vez por não oferecer a ele a pré-escola, tão importante no desenvolvimento intelectual e psicomotor nesta idade. Não obstante este ser um direito garantido pela Constituição Federal:Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:IV - atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade;
e) nesta mesma idade e até tornar-se o adolescente ao qual a senhora se refere - aluno do fundamental - falham o Estado, as polícias, os bandidos, os filhinhos de papai, os atores da Globo, os artistas e todos aqueles que usam drogas, ao condená-lo a viver em um local extremamente violento, com disputas entre facções rivais, com invasões desumanas de policiais em suas casas e um cotidiano de estatísticas piores que de guerras;
f) quanto à sua moradia, falham os políticos filhos da puta, o Estado (habitação), o empresários, os especuladores, por fazê-lo viver em submoradia, sem o mínimo de conforto, sem espaço para ele, com uma densidade demográfica japonesa dentro de sua casa;
g) falham os publicitários que mentem para que ele não seja ninguém se não tiver o que ele não pode ter;
h) falham as emissoras de telvisão ao entrarem diariamente em contato com ele com imbecilidades que não ajudam em nada seu intelecto;
i) falham os empresários de ônibus que o restringe de andar pela cidade por conta do preço da passagem e do péssimo serviço que oferecem;
j) falham os locais culturais que são inacessíveis a ele (inacessíveis financeiramente ou mesmo barreira-cultural- invisivelmente) ;
k) falha a sociedade como um todo que o quer longe;
l) falha a estrutura da escola que só o tem em um pequeno período do dia, deixando-o nas ruas no resto das 24h;
m) falha o Corpo de Bombeiros que carrega bandidos carnavalescos desfilando em carro aberto pelas cidades, ao mostrar que quem tem valor é quem tem dinheiro, não importa de onde vem;
n) falham os jornais de grande circulação que estampam nas primeiras páginas, praticamente todos os dias, as fotos e colunas de fofocas de traficantes e outros bandidos - inclusive tenho um O Dia que tem a primeira capa toda falando do casamento de um traficante - glorificando quem é bandido, mostrando a ele que esse é o caminho;
o) falha o Conselho Tutelar ao superproteger mesmo quando fazem merda, nada fazendo e não mostrando que além de direitos também tem obrigações;
p) falham as editoras de revistas que só colocam a preço de quase nada as revistas mais imbecis que existem, com fofocas e coisas do gênero;
Enfim, apesar de a Constituição prever que "A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade" (Art. 205), a senhora vem me dizer que "quando um aluno é reprovado, é sinal que o médico professor falhou"?Francamente.
É justamente o professor que está lá dentro, cara futura secretária de educação, com o aluno, diariamente, tentando fazer com que ele estude, com que ele dê valor ao estudo, com que ele aprenda!
Veja pelos exemplos abecedários que dei em cima, que o professor é praticamente o único que quer que ele seja alguém pela educação; o professor que dá valor ao estudo; o professor que luta contra toda a merda que a sociedade faz com ele desde antes dele nascer, para que ele se salve.Veja, prezada futura, o que diz a Constituição Federal:
CAPÍTULO II - DOS DIREITOS SOCIAISArt. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.Quais destes direitos o Estado - do qual você tem íntima relação, a ver pelos cargos que já ocupou - oferece ao aluno - e com qualidade?Quase nenhum, né?E você vem me dizer que é o professor que falha, como se só o que fazemos em sala de aula é o que conta, é o que faz um aluno ter sucesso ou não???Francamente.Assinado:Um professor mestre doutorando que tem diversos empregos e mesmo assim luta para que seus alunos possam superar toda a merda que a sociedade faz com eles para que possam ser alguém na vida e que, justamente por se sentir incapaz de fazer isso com o que o Estado lhe oferece, não acredita em reprovação.

Um abraço,João Paulo

Comentários

Ana Paula, já conhecia esta carta e como professora, que também se esforça para passar o melhor para os alunos dentro do que nos oferecem, compartilho com o desabafo do professor.

Abçs
Anônimo disse…
é uma vergonha o nosso
Estado, a nossa politica , as pessoas que ocupam os cargos de confiança...a nossa Constituição é uma farsa.....parabens a esse professor que faz a parte dele enquanto nós (sociedade) literalmente ficamos assistindo... e mantendo distancia...

Postagens mais visitadas deste blog

Alzira Vargas: O parque do abandono

Carta de despedida de Leila Lopes