25 anos sem Clarice

Pois foi exatamente no dia 9 de dezembro de 1977, um dia antes do seu 57° aniversário que Clarice Lispector veio a falecer. Medo da Eternidade
Clarice Lispector

Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade.
Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco deles.
 Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava.
Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o mesmo dinheiro eu lucraria não sei quantas balas.
Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou: - Como não acaba? - Parei um instante na rua, perplexa. - Não acaba nunca, e pronto. - Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas.
 Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer.
Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre.
Eu que, como outras crianças, às vezes tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para fazê-la durar mais.
E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual já começara a me dar conta. - Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca. - E agora que é que eu faço? - Perguntei para não errar no ritual que certamente deveira haver. - Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois que passar o gosto você começa a mastigar. E aí mastiga a vida inteira.
 A menos que você perca, eu já perdi vários. - Perder a eternidade? Nunca.
O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E, ainda perplexa, encaminhávamo-nos para a escola. - Acabou-se o docinho. E agora?
- Agora mastigue para sempre.
Assustei-me, não saberia dizer por quê.
Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada.
Mastigava, mastigava.
Mas me sentia contrafeita.
Na verdade eu não estava gostando do gosto.
E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da idéia de eternidade ou de infinito.
Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade.
 Que só me dava aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar.
Até que não suportei mais, e, atrevessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia. - Olha só o que me aconteceu!
- Disse eu em fingidos espanto e tristeza. - Agora não posso mastigar mais!
A bala acabou! - Já lhe disse - repetiu minha irmã - que ela não acaba nunca.
Mas a gente às vezes perde.
Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a gente prega o chicle na cama.
Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá.
Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra na boca por acaso.
Mas aliviada.
Sem o peso da eternidade sobre mim.

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