Tostão e o Natal

Conto de Natal e de futebol
(JB- 26/12/2001)
  TOSTÃO
COLUNISTA DA FOLHA

Era véspera de Natal. Pedro acordou cedo. Olhou-se no espelho e percebeu que estava muito mais velho, com os cabelos escassos, brancos, a barriga proeminente, a pele mais enrugada e com outras marcas da idade. Pensou na juventude, em tudo o que sonhara fazer e não fez.
Lembrou-se que escutara, em algum lugar, que deveria haver duas vidas: uma para ensaiar e outra para viver. Culpou-se por desejar tanto, já que se sentia feliz.
Pedro é um operário da construção civil. Durante o trajeto de ônibus para o trabalho conheceu Maria, sua doce, alegre e bela companheira. Apaixonaram-se. Tiveram um filho, João.
 Ela trabalha numa fábrica de tecidos. Pedro completara somente o curso primário, numa escola pública. É sensível, inteligente e muito bem informado.
Ele e Maria adoram ler. Participam dos sindicatos de suas classes. Lutam por uma existência mais digna para eles e seus companheiros. Como são os mais esclarecidos, tornaram-se líderes comunitários. Nas horas de folga, trabalham na Rádio Favela, dão aulas de cidadania e orientam as pessoas a evitarem doenças sexualmente transmissíveis e o uso de drogas.
Pedro e Maria são pessoas diferentes. Ele mais realista e agnóstico. Ela, sonhadora e mística.
Ambos sonham em salvar o mundo. Pedro adora futebol. Juntamente com Maria e João, assiste a todos os noticiários e mesas redondas na TV comprada em 24 prestações e com juros exorbitantes. No sábado à noite, Pedro e Maria se divertem na mesa de um bar. Tomam cerveja e falam sobre futebol, filosofia, política.
João tem dez anos. Assim como o pai, se apaixonara pelo futebol. Assistiu à decisão do Campeonato Brasileiro pela TV e ficou empolgado. Para ele, venceu o melhor. O Atlético-PR é o melhor time do Brasil. A equipe marca muito em todas as partes do campo e é bastante ofensiva.
Lembrou-se que o Alex Mineiro, jogador mais decisivo do campeonato, começou no América-MG, seu time do coração.
Assim como os pais, João é muito curioso. Antes de ir para a escola pública, aprendeu um pouco da história do Brasil e do mundo. Os sonhos do garoto não têm limites. Um dia, perguntou ao diretor de sua escola por que eles também não ensinavam coisas diferentes, sobre a vida e as pessoas. O diretor não entendeu. Aos poucos, João descobriu que melhor ainda do que ir ao estádio e assistir aos noticiários da TV era se divertir com a bola.
Ele e outros garotos brincam num campo de terra, próximo da favela.
Disputam campeonatos de embaixadas, dribles e chutes para o gol. Depois formam duas equipes, com oito para cada lado, sem posição.
Um dia, anunciaram que iriam abrir uma escolinha particular de futebol no bairro. J
oão correu para casa e pediu ao pai que o inscrevesse. Pedro colocou o menino no colo e lhe disse: "Filho, na escolinha há muitos meninos e todos aprendem as mesmas coisas. Você terá de fazer somente o que o professor mandar. Na sua idade, o mais importante e gostoso é brincar com a bola, sem regras e compromissos. É a melhor maneira de desenvolver a habilidade e a criatividade. Quando crescer e se houver jeito, poderá ir para as categorias de base dos clubes profissionais.
Aí, vai aprimorar a técnica, escolher sua posição, conhecer a tática e fazer muitos exercícios físicos. No momento, seu corpo e sua mente ainda não estão preparados para assimilar essas coisas. Tudo tem a sua hora certa".
Pedro completou: "Os grandes craques do futebol mundial aprenderam a jogar nas peladas de rua. Tudo o que fizeram de maravilhoso nos grandes estádios do mundo foram repetições do que aconteceu na infância". João compreendeu.
Eram pobres para pagar uma escolinha.
Era noite de Natal. Pedro e Maria sentiam-se divididos.
Gostavam de ver os sorrisos das crianças, a figura do Papai Noel, o brilho das luzes, mas não toleravam a generosidade transitória das pessoas.
Era como se existisse uma data para celebrar a justiça social.
João dormiu e sonhou com uma partida de futebol.
Já era adulto. O estádio estava lotado.
 Ele pegou uma bola na intermediária, driblou dois zagueiros e o goleiro e tocou para as redes.
 Era o gol do título. Idêntico ao que fazia na infância.
Seu pai tinha razão. João acordou e, ao lado da cama, viu uma bola de presente.
Era de couro, novinha, igual à do sonho.
 Seus olhos brilharam.
Era feliz e sabia.

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