Ponto para as formigas

Diana Corso (*)

A história dos jasmineiros perdidos e de como os desejos têm a manha de travestir-se de memórias. Minha casa de infância tinha três árvores de jasmim. Eram flores brancas enormes, quase obscenas, de cheiro desbragado. Os vizinhos perfumavam suas casas com jasmins que pediam à minha avó. Ela e as árvores eram generosas.
A casa foi vendida, a nova dona trocou-as por grama. Inconsolável, passei a tentar recuperar meus jasmineiros. Plantei árvores em todas as casas que tive, em pátios, jardins, sacadas, foram cinco tentativas. Todas fracassadas.
 Perdi para a gula das formigas. Não havia veneno, água de tabaco, ou mandinga que as contivesse. Banqueteavam-se com folhas e flores. Desisti.
Pelo infortúnio, o cheiro do jasmim tornou-se minha obsessão. Procuro seu tom nos perfumes, fico em alas quando lhe farejo a menção, pratico pequenos furtos de flores. Mas como a mente humana é ilógica, se tivesse um jasmineiro, a bela flor branca seria um prazer, não mais nostalgia, nem portal para memórias.
As evocações passadas se apagam frente ao que nos acompanha até o presente. Na posse dele, provavelmente estaria agora caçando cheiro de pitangueira.
As folhas dessa árvore tem aroma comestível, também havia delas naquele jardim. Cheiros são passageiros, dão prazer e logo fabricam cobiça.
Pela fugacidade, pelo caráter envolvente, que convoca ou mesmo provoca, o olfato é, entre sentidos, a melhor representação para o desejo.
Nos desenhos animados a personagem, em transe, voa carregada pelo aroma da flor, da comida fumegante ou do perfume da amada.
 Cheiros antigos, do tipo que nos transporta para estados de espírito do passado, são uma curiosa combinação de nostalgia e desejo. Quanto à nostalgia, os psicanalistas insistem em que nossa história pessoal é praticamente obra de ficção, que todos tem dom literário para criá-las.
As lembranças são editadas ao gosto pessoal, em geral a serviço de desejos que se escondem por trás dessas pequenas evocações. Já os desejos são um motorzinho que nos leva na direção do que está em falta na nossa vida.
Cobiçar algo que já se teve, como os jasmineiros perdidos, é falsamente querer algo do passado.
 Na verdade, é um desejo atual que se traveste de antigo. A partida daquela casa perfumada significou uma guinada no meu destino.
Minha mãe, viúva, casou-se com aquele que tornou-se um novo pai e mudamos para outro país. Valeu a pena, mas ali ficou um destino que nunca vivi. Quem teria me tornado se nunca tivesse abandonado a terra natal?
Jasmins têm cheiro daquela que nunca cheguei a ser.
Cobiço-a por ser desconhecida. Nela cabem todas as idealizações, pois a realidade é sempre pobre frente à fantasia.
As saúvas ganharam a disputa porque a árvore real é mais delas do que minha.
 Para os insetos eram folhas doces, saborosas, alimento de verdade.
 Para mim, pura ilusão.
(*)Diana Lichtenstein Corso é Psicanalista Membro da APPOA (Associação Psicanalítica de Porto Alegre). Formada em psicologia pela UFRGS, é colunista do jornal Zero Hora e publicou o livro Fadas no Divã: psicanálise nas histórias infantis, em 2005, e Psicanálise na Terra do Nunca: ensaios sobre a fantasia, em 2010, ambos pela Ed. Artmed, escritos em parceria com seu marido Mário Corso.
Site: www.marioedianacorso.com

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