Compro cabelos

Na meca gaúcha do negócio capilar, não tem cabeleira ruim

por Alexandre Rodrigues
Revista Piauí/77

Conduzindo a filha Michele, 12 anos, pelo braço, Gisela Braga atravessa, ainda desconfiada, a porta de entrada de uma sala do Esqueleto, edifício do Centro de Porto Alegre conhecido por sua aparência inacabada – está para ser terminado desde 1959. Ambas ostentam uma longa e densa cabeleira preta solta sobre os ombros e são levadas por um agenciador, Eliseu Soares Jr., que é quase completamente careca. Era uma manhã de dezembro quando as duas saíram de casa em Cachoeirinha, na região metropolitana, rumo à capital gaúcha, com uma ideia na cabeça: vender os cabelos.
A negociação é rápida. Renan de Fraga Moreira, o gerente de mechas curtas e espetadas, examina as madeixas de Michele, prendendo-as numa trança. Após constatar que medem 50 centímetros, faz uma oferta: 500 reais. Negócio fechado. A adolescente tem os cabelos lavados numa pia na sala ao lado. A mãe, que observa tudo, revela: “Também já vendi o cabelo. Três anos atrás.” A filha escolhe em um catálogo o novo visual, igual a um usado pela atriz Mariana Ximenes. Tem então a melena cortada e depositada sobre uma toalha branca. Em poucos minutos, ganha um corte curtíssimo. É a vez de a mãe anunciar: “Vou cortar também.”
O estabelecimento fica na meca do comércio de cabelos em Porto Alegre. No 2º andar do Esqueleto, acima de uma galeria de lojas especializadas em câmeras, relógios e bugigangas eletrônicas importadas, funcionam nove salas, todas com o mesmo anúncio na porta: “Compro cabelo.” A maior delas é a Central do Cabelo, um salão no fundo do corredor com as paredes cobertas por um mostruário de centenas de rabos de cavalo. São cabelos pretos, louros, ruivos, castanhos e grisalhos, de textura lisa, cacheada e ondulada, nos comprimentos curto, médio e longo.
Vera Regina Abreu de Fraga, proprietária do negócio, tem madeixas castanhas e avolumadas. Começou como cabeleireira no mesmo andar, e, dez anos atrás, vendo que os apliques tinham chegado para ficar, decidiu mudar de ramo. “As pessoas me perguntavam: ‘Compra cabelo?’ Resolvi comprar.” Hoje é a principal fornecedora dos salões da cidade que oferecem o megahair, técnica que cola fios novos aos originais com silicone, proporcionando um cabelame a quem não quer, ou não pode, esperar o próprio crescer. Há cinco anos, ganhou a companhia do filho, Renan Moreira, que trocou a carreira de cabo do Exército pela gerência da loja.
No mundo da compra e venda de cabelos, espessura e volume são tão importantes quanto o comprimento, ensina Vera. Fios grisalhos são comprados porque aceitam melhor a tintura; cabelos masculinos são melhores para apliques porque passaram por menos tratamentos químicos. Melhor ainda, ressalta ela, se for cabelo infantil – por isso Moreira corre à porta quando entra outra mulher trazendo pela mão uma garota pequena. A criança tem os cabelos compridos e pretos como os da mãe. Depois de uma breve conversa, as duas vão embora. “A guria queria vender, mas sem cortar rente, só aparar”, explica ele. “Pena. Cabelo infantil vale mais por ser mais fino.”
Entra a seguir Cristiane Machado, que, com os cabelos presos, não dá impressão de ter muito a vender. Mas, quando solta o elástico, revela o maior rabo de cavalo do dia. Com 60 centímetros, a oferta é a mesma para os cabelos 10 centímetros menores: 500 reais.
S ó madeixas louras e compridas, como as da modelo Gisele Bünd-chen, alcançam um valor maior, entre 700 e mil reais. São, explica Moreira, o Santo Graal do ramo. “O cabelo da Gisele é o que mais tem procura. Quando aparece igual, tem comprador no mesmo dia.” Nos salões, um aplique com a melena igual à da top brasileira, nas versões lisa ou ondulada, custa até 3 mil reais.
Cristiane aceita os 500 reais. Enquanto tem os cabelos tosados, comenta a surpresa que o marido terá – é a primeira vez que os corta desde que se casou, há um ano. Com alguns ajustes na frente, surge o novo corte, um penteado puxado pa-ra o lado, também inspirado em Mariana Ximenes. “É quem elas mais escolhem”, diz Sérgio Matoso, cabeleireiro e marido de Vera. No catálogo, havia a opção de Cristiane ficar parecida com Xuxa, Ana Maria Braga e a atriz Samara Felippo. “Até pensamos em trocar, mas esses cortes ainda são os preferidos, então vamos deixando.”
Quem também fica satisfeita é Graciela Aguiar da Silva, de cabelos espetados e descoloridos nas pontas, que descobriu Cristiane na rua e, por tê-la levado até a Central do Cabelo, ganha uma comissão de 50 reais. Com uma placa pendurada no peito, “Compro cabelos”, Graciela vive há treze anos de encontrar quem queira vendê-los. A concorrência é dura. “Não dá para dar mole. Se vejo um cabelo bonito, não tenho vergonha. Vou e pergunto: ‘Quer vender?’” Além dela, há cerca de sessenta outros “olheiros” diariamente nas redondezas fazendo o mesmo.
O negócio segue a sazonalidade. Em fevereiro, a procura maior dos salões é por cabelos crespos, que serão usados no Carnaval. Os compridos são mais procurados no inverno. No final do ano, com a proximidade do Natal e a chegada do verão, aumentam as interessadas em vender suas melenas, e os preços caem. No meio do corte, algumas choram. Outras desistem e vão embora.
         O gerente Moreira não revela qual o lucro do estabelecimento na venda. Mas garante que todo mundo pode ganhar alguma coisa. “Este é um negócio em que não há cabelo ruim.” Mesmo os curtos têm um preço, de 10 reais, diz. Curiosamente, os muito longos é que sofrem o maior preconceito. “A partir de certo comprimento ninguém quer usar. As pessoas pensam que cabelo grande demais é promessa.”

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