Calligaris na manhã ensolarada...

CONTARDO CALLIGARIS
Palavras de amor
A declaração de amor não serve para seduzir o objeto de amor, mas para apaixonar-se cada vez mais
Os sentimentos funcionam como picadas de mosquito, que coçamos e recoçamos até que se tornem feridas infectadas e, às vezes, septicemias generalizadas (quem sabe fatais). Salvo um exercício difícil de autocontrole, qualquer picada pode adquirir uma relevância desmedida: a gente tende a se coçar muito além da conta porque descobre que se coçar não é um alívio, mas um prazer autônomo em si.
Por isso mesmo, em geral, não confio nos sentimentos --nem nos meus, nem nos dos outros. Não é que eu supunha que os humanos mintam quando amam, odeiam ou se desesperam no luto. Nada disso.
Apenas verifico que os sentimentos, em geral, são condições autoinduzidas: transtornos ou desvios produzidos pelos próprios indivíduos, que, se não procuram sarnas para se coçar (como diz o ditado), no mínimo adoram coçar as sarnas que eles têm. Detalhe: coçando, aumenta o prurido, assim como aumentam a vontade e o prazer de se coçar.
Tomemos o exemplo do amor. Eu encontro, conheço ou vislumbro de longe alguém que preenche algumas condições básicas para que eu goste dela. Sussurrando entre quatro paredes ou gritando em praça pública, anotando no meu diário ou escrevendo para grandes editoras, passo a encher o ar ou as páginas com as descrições da beleza inigualável de minha amada e com as declarações hiperbólicas de meu sentimento.
Claro, minha prosa ou poesia poderão, quem sabe, conquistar meu objeto de amor, mas esse é um efeito colateral. O efeito mais importante (e esperado) de minhas palavras de amor não é tanto o de seduzir o objeto de meus sonhos, mas o de eu me apaixonar cada vez mais. Pois a intensidade do meu amor será diretamente proporcional à insistência e virulência de minhas declarações.
Em linguística, chamamos performativas aquelas expressões que, ao serem proferidas, constituem o fato do qual elas falam. Exemplo clássico: um chefe de Estado dizendo "Declaro a guerra" --essa frase é a própria declaração de guerra.
Dizer que sou apaixonado, que odeio ou que me desespero no luto talvez não sejam propriamente performativos. Mas se trata, no mínimo, de semiperformativos, ou seja, talvez os sentimentos existam antes de serem declarados, mas eles só crescem e tomam conta da gente na hora de serem ditos, descritos e contados --na hora de sua declaração, pública ou privada.
Há três razões pelas quais o amor é absolutamente indissociável da literatura amorosa. A primeira é que a gente aprende a amar e a declarar o amor pela literatura. A segunda é que o amor se tornou relevante em nossa vida à força de ser descrito e idealizado pela literatura. A terceira é que o amor, como sentimento, é um efeito das palavras que o expressam: a literatura nos instiga a amar tanto quanto nossas próprias declarações amorosas.
Acabo de terminar a prazerosa leitura de "Como os Franceses Inventaram o Amor" (editora Prumo). Nele, Marilyn Yalom percorre a literatura francesa e revela que ela é um repertório completo do amor.
A coisa começa com o triângulo amoroso, que não é um acidente ou um imprevisto do amor; ao contrário, o amor começa, mil anos atrás, com o triângulo amoroso. Tristão escolta Isolda, a futura esposa de seu tio, e se apaixona por ela. Lancelote venera seu rei Artur, mas se apaixona pela rainha. E, em geral, os poetas do amor cortês amam damas casadas (e frequentemente fiéis a seus senhores, aliás).
A França é, para Yalom, a pátria do amor. Não só pela riqueza de sua literatura, mas justamente porque, na cultura francesa, do amor cortês do século 12 até as conversas das preciosas nos salões parisienses do século 17 (que Molière ridicularizava, mas também admirava), amar é, antes de mais nada, uma arte de dizer, de ser efeito das próprias palavras que usamos ao declarar e descrever nosso sentimento.
Alguns acham que falta amor em sua vida. Como Emma Bovary ou Anna Kariênina (extraordinária a tradução de Rubens Figueiredo, pela Cosac Naify), temem que, sem amor, sua vida nunca chegue a ter a dignidade de um romance. A eles, recomendo paciência: os tempos mudam, e talvez se afirme hoje, aos poucos, uma retórica nova, menos sentimental, capaz de dar valor literário a uma vida sem amores e paixões.
Outros se queixam dos estragos que o excesso de amor faz em sua vida. Aqui a cura é simples: eles não vão acreditar, mas basta se calar um pouco, assim como é suficiente não se coçar para que as picadas de mosquito parem de incomodar.

(*)Contardo Calligaris (Milão1948) é um psicanalista italiano radicado no Brasil. É colunista da Folha de S. Paulo.

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