Fernando Henrique e Lula

Reproduzo neste post parte de entrevista com a pesquisadora do CNPQ Virginia Fontes feita pela equipe da revista Caros Amigos. Especialista em estudos dos chamados movimentos sociais de base, a meu ver ela coloca com clareza o papel do Lula no tabuleiro político brasileiro. Tenho feito reiterados comentários nos sites do Xacal e do Roberto Moraes a respeito da conduta errática do governo Lula e como ele é uma continuação do enfoque neo-liberal introduzido pelo FH, para desespero do também blogueiro Roberto Torres e alguns outros que insistem em dicotomizar estas duas administrações que na verdade são parte de um mesmo processo político. Confiram:

"Lucia Rodrigues - Como analisa a crise do Senado? Dá para dizer que é uma crise institucional ou é uma briga entre caciques que se desentenderam por vários motivos?
Eu diria que tem as duas coisas, os dois processos não estão separados. Se a gente for pensar em longo prazo, eu venho analisando isso da seguinte forma: a partir de 89, mais ou menos, a condição de que seja possível manter uma estrutura representativa tal como ela existe agora, depende de conseguir figuras públicas aparentemente limpas, figuras públicas que tenham uma trajetória, não só aparentemente limpas, mas que vêm de uma trajetória capaz de neutralizar os movimentos sociais, que é mais importante ainda do que o aparentemente limpas. Vamos lembrar um pouquinho pra trás que o Fernando Henrique Cardoso, quando foi candidato, veio de uma trajetória da esquerda, embora a gente já sabia que o FHC já tinha mudado esta trajetória, porém essa mudança ainda era incipiente, uma mudança inicial. Ninguém imaginava que o governo Fernando Henrique fosse, por exemplo, investir contra os petroleiros da maneira como investiu, isso era impensável, nem contra os direitos dos trabalhadores. Portanto, Fernando Henrique neutralizou uma parcela da intelectualidade de esquerda nessa ida dele para o governo, quem quis se iludir se iludiu, mas em parte achava que Fernando Henrique já vinha de uma associação com o PFL, a gente já sabia qual era a associação que estava feita no começo. Mesmo assim isso permitiu neutralizar setores de classe média incomodados com o processo, e alguns setores inclusive de movimentos, de um tipo de movimento social que é o que eu chamo da filantropia mercantilizada, que são movimentos que começam populares e vão se tornando pouco a pouco militância paga em entidades mais ou menos filantrópicas. É quando a questão das classes sociais no Brasil deixa de ser um problema de classe e começa a ser um problema de pobreza. Deixa de ser uma questão de luta comum e passa a ser uma questão de filantropia, um problema da pobretologia.
Renato Pompeu – E qual a ligação com o Senado?
Isso é para chegar ao Senado, né. O segundo movimento é o Lula, esse movimento é mais importante ainda. Se o FHC já cumpre esse papel de levar para o conjunto das instituições de representação política no Brasil uma espécie de aparência limpa, apesar do braço dado com o PFL, a eleição do Lula tem papel muito mais importante para estabilizar o chamado jogo burguês no Brasil, uma vez que ela consolida essa trajetória que já vinha sendo feita antes, mas agora com mais cacife, pois agora traz a CUT,traz uma parcela grande do PT, liquida politicamente o elo que este partido tinha com os movimentos de base, não só liquida o elo como converte essa ligação numa ligação adequada para o jogo político. Lógico que em todos os casos isso significa que há um adiamento das condições da crise institucional e há um mergulho desses partidos limpos, entre aspas, dessas pessoas limpas no mundo da representação razoavelmente falseada. Acho que isso é um problema grave. Eu discuti isso num artigo dizendo que o PT se deslocou do papel ético-político – que o Gramsci sugere – para o papel de definidor do que seria o papel moral, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso. O resultado disso é que ele perdeu o horizonte ético, que era o horizonte principal e que devia estar ligado com os movimentos de base. Portanto eu acho que o problema do Senado é um problema estrutural nosso, primeiro nós temos uma estrutura representativa problemática, nós temos um sistema bicameral que é outro problema.
Lúcia Rodrigues - Você defende a extinção do Senado?
Eu não defendo a extinção do Senado instantaneamente. Do ponto de vista de uma transformação real da sociedade brasileira isso não virá através das instâncias eleitorais e nem das instâncias representativas. Nós já sabemos disso, já temos a experiência, já vimos o que foi eleger o PT e, sobretudo o Lula mais até que o PT, e ele simplesmente
se converter no mesmo, porque o jogo político é uma máquina de produzir o mesmo. Então a luta popular tem de saber que ela tem de se manter para além dos seus representantes, não ser subordinada à representação."

Para ver toda a entrevista, aqui vai o endereço:

http://carosamigos.terra.com.br/index_site.php?pag=revista&id=132&iditens=308

Comentários

xacal disse…
cláudio, caro cláudio...

ainda que tomemos como corretos alguns dos argumentos aqui colocados, evitemos a absolutização deles, uma vez que o título dela, ou de quem quer que seja, não confiram tônus de verdade a essas OPINIÕES...

valem tanto quanto As minhas, as suas, ou as do Roberto Torres...é claro que els têm mais "ferramentas acadêmicas" para tais análises...mas isso não é tudo(pelo menos eu "torço" para que não sejam, senão estou "ferrado"...rsrsr...bem sabes que só possuo o segundo grau técnico)

importante sua inciativa de trazer argumentos e opiniões novas ao debate...mas não esqueçamos no peso delas: são opiniões...

agora, dito isso, vamos ao debate(isso sim, é o que presta):

ninguém em sã consciência trataria a história(nesse caso as duas administrações)como eventos estanques e sem correlação...

o que a eminente opinadora faz é chover no molhado: ela diagnostica o processo de apropriação pelas elites dos projetos políticos "modernizadores", FFHHCC, e Lula...

não há novidades na descrição do processo de alianças, e do resultado dessas "alianças" no espectro programático desses grupos políticos(psdb e pt), como a corrosão da noção moralizadora que mantinham junto ao público...

o que a doutora não faz, e não sei se por falta de espaço, de provocação, de desejo pessoal, ou os três fatores unidos, é falar da forma com que a mídia "vende" essas informações, sempre com vistas a "denegrir" a imagem de um dos lados "dessa aliança"...ou pior: igualar os dois processos, que sim, têm enormes diferenças...tanto em forma, quanto em conteúdo...

resumindo em um exemplo recente: o sarney só virou a escória quando fez aliança com a esquerda...enquanto era um avalista do projeto neoliberal, tudo bem...

bom, agora vamos aos resultados...Não sou partidário dos fins justificam os meios, a não ser que você não tenha outros meios...

e olhando a configuração política brasileira(como a doutora bem diagnostica), creio(opinião minha)que não havia outro jeito de governar sem fazer "tais alianças", e ainda mesmo sacrificar a relação com os movimentos sociais...esse preço, concordo, é alto, mas era o preço a ser pago por quem tinha um projeto de incluir mais de 20 milhões no mercado do consumo, mudar a orientação das privatizações, enfim, reconstruir o Estado brasileiro, que inclusive, foi, e ainda é fundamental para nossa sobrevivência na maior crise mundial desde 1929...

ao contrário da bancarrota que nos atingiu em crises muito menores no período FFHHCC...

há outros "argumentos", mas que não esgotemos aqui, pois essa discussão nos renderá, ainda, outros belos posts...tenho certeza...

um abraço...
xacal disse…
Caro Cláudio,

para continuar a polêmica:

a problematização apresentada pela doutora Virgínia, que no meu ralo enxergar, é o cerne da questão é: como convergir a luta popular(que na visão dela é anticapitalista)com uma agenda de governança progressista...e o pior: há como reconhecer esse governo como progressista, ou ele é apenas uma "concessão" capitalista para se reciclar...?

eis aí a contaminação óbvia(já sabemos, a ciência não é neutra)da análise pela vontade da doutora...pois ela não enxerga(porque não quer)que essas hipóteses não são excludentes, e sim complementares, ou seja: Lula é um avanço, mas também tem seus limites na realidade capitalista...o resto é o "triunfo da vontade"...

ora, ora, ora, atribuir a "culpa" a um governo não pode ser considerado, no caso de uma acadêmica como ela é, ingenuidade, é MÁ-FÉ mesmo...

se os movimentos sociais foram cooptados pela agenda do governo(aparelhados, como se dizia, "antigamente"), é porque boa parte dos conflitos foram "superados", e esses movimentos, foram, TAMBÉM, e PRINCIPALMENTE, incapazes de formularem novas agendas, ou avançarem na LUTA ANTICAPITALISTA, ou não...?

se os petroleiros da PETROBRÁS estão mais satisfeitos com o governos atual do que o anterior, isso é bom ou é ruim...? não sei, mas se as reivindicações economicistas da categoria foram, em parte, satisfeitas, partam para a luta histórica anticapitalista...autonomamente...
se os pobres estão mais satisfeitos, é porque boa parte de sua agenda foi satisfeita...cabe aos movimentos populares(extra-governo)promoverem sua "conscientização" de que isso é pouco...

o que a doutora não fala, por medo, ou por má-fé, como já disse, é que a satisfação da agenda mínima(bem estar)não gera, espontaneamente, esse "upgrade" na luta de classes, ao contrário...aponta até para um "conservadorização" das agendas políticas dos movimentos sociais, pela simples acomodação(um sentimento puramente antirrevolucionário)...vejam no caso dos movimentos sociais da Europa: racista, conservadora, e pior: ambientalista, pelo pior viés...o que chamaria, eu, pobre semianalfabeto de: acomodação cíclica anti-luta de classes...

o problema da "tese" dela não é o diagnóstico(apenas)...é o uso que faz dela...atribuir a um governo uma tarefa que não tem, pelo menos, não em sua essência primordial, que é: GOVERNAR...

continuemos o debate...hoje eu tô animado...rsrsrs...mas veja, dê um desconto pois esses argumentos são intuitivos, desprovidos de leitura ou base teórica
Celso Vaz disse…
Bom debate Claudio,

Além do mais, a revista "Caros Amigos" é com certeza uma das melhores do Brasil hoje em dia!! Espero que tenhamos mais postagens suas por aqui!!!

saudações tricolores!!!
xacal disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
xacal disse…
o último comentário ficou "vencido"...
Roberto Torres disse…
O debate traz uma questao muito instigante: se o governo lula deu ou nao prosseguimento a neutralizacao da luta de classes.

Se esta tese e colocada como um "criterio" para avaliar a relacao de continuidade ou mudanca entre fhc e lula, me parece um otimo caminho para um critica genorosa: podemos com ela tocar na contradicao principal do governo ou mesmo perceber que as contradicoes do governo sao contradicoes da sociedade, e, creio eu, da visao que esquerda (de oposicao, como o PSOL) tem sobre o Brasil.

Meu argumento e de que o governo Lula enfatizou, ao inves de neutralizar, a luta de classes no Brasil, mas que isso se combinou com o enfraquecimento dos movimentos sociais organizados (enfraquecimento que para mim nao e responsabilidade do governo, mas das contradicoes da sociedade civil organizada no Brasil).Este paradoxo para mim se explica por duas razoes: a trajetoria de Lula, ao contrario do que diz professora, ao se projetar como simbolo de representatividade do que a professora pejorativamente chama de "pobretologia", se tornou um marco pratico de que no Brasil os pobres tem demandas (comer por exemplo, o que deve ser uma demanda incompreensivel para quem nunca se preocupou com isso) que nunca foram consideradas na vida publica. Lula representa uma classe, os pobres.

No discurso de esquerda colonizada por uma visao de esquerda europeia, que ja morreu ha tempos, que a professora apresenta, pobreza parece nao ter nada a ver com luta de classes: para ela lula da classes e o enfrentamento de organizacoes politicas, por pessoas que se associam como classe e por interesses bem definidos. A questao que ela nao ve e que a esquerda no Brasil nao pode repetir a historia da europa (e nem deve,a meu ver). O alvo social, a classe mais desprivilegiada, em paises como o Brasil, nao sao os trabalhadores organizados (o MST e outra historia, e merece outra analise), mas sim os trabalhadores desqualificadoes e desorganizados. Sao estes ultimos que sempre careceram de voz no Brasil, e e pela voz de Lula que elas falam nos dias de hoje.
A maior contradicao do PT, ao meu ver, e como se tornar um partido que, criado por setores organizados da class trabalhadora, possa representar e articular os interesses dos pobres desorganizados, e nao o de continuar sendo um partido de trabalhadores organizadoes.

O fato e que o maior sucesso do governo se deve a ele ter conseguido representar os interesses dos pobres desorganizadoes, e a maior contradicao do governo e que ele nao conseguiu transformar esta representacao em organizado autonoma dos representados. Lula so tem um, infelizmente.....

A agenda neoliberal foi rompida por Lula na medida em que o governo criou politica para os pobres. Quando a professora despreza este fato, culpa o governo pela contradicao social de os mais oprimidos nao serem os mais organizados e ao mesmo tempo aceita a ideia de que interesses desorganizados previamente nao sao os mais legitimos a serem representados.

Para mim a maior contradicao do pos lula e como enfrentar este fato: os pobres, fortemente representados pelo governo Lula, nao contam com organizacoes politicas que possa representar seus interesses depois de que a legitima relacao carismatica com Lula sair da cena oficial.

Ciro Gomes tem sido, a meu ver, o unico nome de destaque na politica nacional que tem enfrentado esta questao no debate com o governo. E preciso enfrentar este debate, toda a esquerda precisa faze-lo. Obviamente Serra nao representa e nao via representar a "pobretologia". Ai a questao e simples: gostar ou nao de pobre...

A questao pratica da esquerda para mim e esta. Se isto no horizonte estrategico signigica ser anticapitalista (o que eu acho), este horizonte se torna um lugar vazio se a esquerda nao perceber que os pobres desorganizados e o "lado negativo" da luta de classes.

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