A cor do desamparo- Carlos Eduardo Leal
A solidariedade pode ser mais um dos muitos nomes que podemos utilizar para a ação voluntária. Mas creio que diante de tanta tragédia, qualquer nome torna-se precário, pois é impossível medir e quantificar a dor. Esta, nestes momentos, torna-se inominável. Tenho uma casa em Teresópolis e, como muitos, no último fim de semana fui levar donativos para as vítimas. Mas, eis que chegando lá, tornou-se impossível ficar indiferente e, ato contínuo, alistei-me na Cruz Vermelha. Como psicanalista, fui designado para a delegacia/IML/acolhimento das pessoas em busca de parentes mortos e/ou desaparecidos. Em minutos tive que esquecer tudo que sabia em anos de prática clínica e reaprender a cada novo caso. Reaprender a dimensão da vida e, principalmente, da morte. Ali, naquela dimensão desumana, muito além de tudo que até então ao longo dos meus quase trinta anos de consultório havia vivido, tive que improvisar algumas coisas: um abraço que confortasse, acolher um choro, pensar rápido sobre o flagelo de uma família e sua semidesaparição, acolher um corpo literalmente despedaçado e, talvez, o mais difícil, encaminhar o olhar das pessoas ao encontro de inúmeras fotos de corpos, rostos desfigurados, inchados pela terra e pela água, roxos, disformes. Tentativa de reconhecimento de alguém que um dia foi tão próximo na felicidade e no compartilhamento da vida. Tentativa de reconhecimento de alguém que se sabia de cor o tom dos cabelos, a espessura das sobrancelhas, o corte das unhas. Pequenos detalhes que se desfiguram diante da enchente real de terra, paus, pedras, lama e, da enchente afetiva de emoções que transbordam para outras margens do sem fim. Margens destroçadas, sem bordas definidas. Rios de lágrimas que nunca presenciei. O que dizer de uma mãe que procura pelo seu menino de dois anos e fica a olhar fotos de crianças mortas, deformadas pela cor, a terra selvagelmente nas bocas, nos olhos, narizes. Se é dura esta descrição? Pois então escutem com seus corações o que estariam pensando aquelas mães ao não conseguirem reconhecer um pequeno traço de seus filhos. Pensem que elas poderiam estar pensando também nas outras mães que nunca mais irão encontrar vestígios ou aquele cheiro particular de suas crianças. O pior desta tragédia é que com o passar do tempo, todas estes sobreviventes se tornarão invisíveis. Pessoas comuns, numa miséria incomum, mas desasistidas pelo poder público. Vimos e temos visto o mesmo filme ao longo dos anos. Hoje elas ainda frequentam os jornais. Amanhã, quando outra desgraça sobrevier, eles serão apenas um número numa estatística cruel e perversa. Por isso é preciso uma assistência continuada. A educação, a saúde e a prevenção de riscos não é um evento, mas uma ação permanente. O evento, a catástrofe, é pontual, mas o movimento para se reduzir a dor, a perda e as mortes, deve ser um projeto de toda uma vida.
Ainda não há uma tinta para colorir a tragédia deste desamparo. Ainda não há uma cor definida para amenizar o cinzento desta tristeza. Porém, a solidariedade talvez possa ser o nome para se começar a pensar na cor da esperança.
Ainda não há uma tinta para colorir a tragédia deste desamparo. Ainda não há uma cor definida para amenizar o cinzento desta tristeza. Porém, a solidariedade talvez possa ser o nome para se começar a pensar na cor da esperança.
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