A herança

Alon Feuerwerker

A presidente da República está diante do desafio colocado aos grandes jogadores em bolsa, ou nos demais ramos de mercado. Depois de faturar na alta, dar um jeito de acumular também na baixa.

Em linguagem figurada, Dilma Rousseff adquiriu as ações do governo anterior baratinho, assumiu a Casa Civil no vórtice da grande crise de 2005.

Ocupou inteligentemente os espaços e chegou à cadeira mais ambicionada da política nacional. Seu principal combustível foi o apoio de um governo muito bem avaliado no momento decisivo. Especialmente de um presidente muito bem avaliado.

O antecessor tinha um estilo bastante peculiar. Eventuais problemas recebiam, na preliminar, tratamento destinado a preservar a figura do chefe e desqualificar a crítica e os críticos.

Ou eram produto da torcida contra, de quem não se conformava com o sucesso de sua excelência, ou eram factoides colocados no caminho de um país em marcha irreversível para o grande destino. Ou, no mais das vezes, ambas as coisas.

O comportamento até agora da sucessora é de um contraste brutal. Por temperamento ou convicção, ou talvez pelo desejo de implantar um modus operandi próprio, antes de acusar adversários pelos problemas ela parece tratar de buscar alguma solução. O país agradece.

Mas tudo na vida tem um custo. A operosidade exibida pela presidente acontece obrigatoriamente em lacunas deixadas pelo endeusado presidente que se foi. Não poderia ser diferente. O grupo que a elegeu está no poder já faz oito anos. Ela mesma está no Planalto há quase seis. Falta só cair a ficha.

O governo do PT não foi inventado em primeiro de janeiro de 2011.

Para o antecessor, as críticas à gestão do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) eram movidas pelo desejo de que não desse certo. Mas hoje, depois de mais uma trapalhada em sua área de atribuições, foi exonerado o presidente do Inep, o órgão federal responsável.

Esta semana um grupo de ministros reuniu-se, por determinação da presidente, e começou a trabalhar para o Brasil daqui a quatro anos estar dotado de um sistema confiável de alerta para desastres climáticos.

Aqui também a aritmética é soberana. Oito é maior do que quatro. Se o PT está no poder há oito anos, se o país precisa de um sistema assim e se implantá-lo leva quatro anos, por que não foi feito entre 2003 e 2010?

Um argumento é que só agora se comprovou a prioridade. Não é bem assim. É verdade que a tragédia da serra fluminense tem uma dimensão acima de outras recentes. Mas houve outras recentes.

Esta semana o Comitê de Política Monetária reúne-se num cenário complicado. A inflação galgou o degrau, ou alguns degraus, ao longo de 2010. O remédio de praxe é subir os juros.

Mas essa subida complica a situação por outro lado, ao estimular uma valorização maior ainda da moeda brasileira. Que insiste em ignorar as medidas anunciadas com pompa e estrondo para emagrecê-la.

Está evidente a cada dia que o Banco Central cometeu um erro grave na passagem de 2008 para 2009, perdendo a oportunidade de reduzir fortemente os juros num cenário de demanda tendendo a zero. Como resultado, as taxas agora vão subir de um patamar já elevado.

Enquanto isso, o ministro do Desenvolvimento, talvez a figura mais próxima da presidente hoje em Brasília, quebra a cabeça para encontrar um jeito de proteger as exportações e a indústria brasileiras sem criar um ambiente tão protegido que desestimule a competição, a inovação e a produtividade. Não é trivial.

Nas comunicações e nos direitos humanos, os titulares tateiam caminhos para evitar que contenciosos deflagrados no período passado se tornem minas explosivas no caminho inicial de um governo que, por enquanto, parece contar com boa vontade geral.

Não que os projetos tenham sido completamente abandonados. Apenas tenta-se fugir da armadilha do confronto a qualquer custo, outra criação de período que acabou.

E tem o imbroglio dos direitos humanos no Irã. Assunto em que o ex-presidente nos meteu sem nenhuma necessidade.

Em termos práticos, por enquanto Dilma só tem conseguido tempo para lidar com problemas herdados. Há, é certo, o programa de erradicação da miséria. Mas não chega a ser novidade verdadeira.

O que Dilma estaria dizendo da herança que recebeu, se o governo que acabou no dia 31 de dezembro fosse da hoje oposição?

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