Espectro do Cabo Anselmo ronda os protestos do Rio - Por Mário Magalhães
                                                                           Anselmo, que parecia uma coisa, mas era outra
O
 fantasma que ronda as manifestações em curso no Rio ganhou carne e osso
 em vídeos mostrando a ação de prováveis infiltrados da Polícia Militar 
no protesto de segunda-feira nos arredores do Palácio Guanabara.
Algumas
 imagens podem ser vistas mais abaixo. Participantes do ato público 
sustentam que agentes do serviço reservado da corporação, afamado como 
P2, teriam jogado coquetéis molotov contra a tropa. O propósito, acusam,
 seria justificar repressão truculenta. Os artefatos feriram dois soldados, de acordo com a PM.
Os registros são eloquentes. Nota da polícia confirma o emprego de agentes se passando por manifestantes, mas nega com contundência que PM tivesse ferido PM, a fim de incriminar os ditos “baderneiros”.
A
 olho nu, a análise sobre a identidade de ao menos um atirador de bomba 
incendiária é inconclusiva para este repórter míope que aqui escreve. O primeiro vídeo ao pé do post aponta para coincidências. Um blogueiro do “New York Times” anotou diferenças.
Um
 vídeo que a PM divulgara ontem no Youtube saiu do ar depois de 
observadores encontrarem semelhanças entre o arremessador de explosivo e
 um aparente infiltrado que outra gravação flagrou.
Serviços 
secretos de informações não são instrumentos exclusivos de ditaduras. 
Eles têm serventia legítima ao Estado democrático de direito. Quase 
todas as grandes apreensões de drogas ilícitas no país resultam da 
coleta eficaz de dados por agentes de inteligência da Polícia Federal. 
Supõe-se e espera-se que a Agência Brasileira de Inteligência tenha 
investigado com rigor a possibilidade de conspirações terroristas contra
 o papa em sua visita ao Brasil, nem que seja para se certificar de que 
elas de fato constituem paranoia. E por aí vai.
Ao contrário do 
consagrado por tiranias, contudo, na democracia os serviços de 
espionagem militares e policiais precisam se submeter aos limites 
constitucionais. Não devem mirar antagonistas políticos, combatendo-os 
como os “inimigos internos” preconizados pela Doutrina de Segurança 
Nacional da ditadura instaurada em 1964.
A pancadaria nas 
cercanias do Palácio Guanabara lustrou a argumentação do governo Sérgio 
Cabral, que horas antes baixara decreto prevendo a quebra sem 
autorização judicial do sigilo de comunicações de alegados suspeitos de 
vandalismo. Juristas consideraram a iniciativa ilegal, e o governador recuou.
Ignoro
 o caráter da atuação dos policiais infiltrados. Mas sei que 
provocadores têm servido, de caso pensado ou não, à notória campanha em 
curso para demonizar as mobilizações. Ressurgiu o tom opositor da 
cobertura jornalística que vigorou nos primeiros atos do Movimento Passe
 Livre, em São Paulo. A despeito das ressalvas, equipara-se a massa 
combativa e pacífica à minoria de manifestantes ou “manifestantes” 
violentos.
Eu enfatizara na sexta-feira: “Como [os autores de 
quebra-quebra no Leblon] queimam o filme dos protestos e beneficiam o 
governo estadual com o verniz de vítima, talvez haja infiltrados de origem nebulosa. Cometeram crimes, têm de ser punidos escrupulosamente, nos termos da lei”.
O
 que isso tudo tem a ver com o tal Cabo Anselmo? Para quem chegou agora 
ao tobogã da história: o personagem é o marinheiro de segunda classe 
José Anselmo dos Santos. Os jornais do passado o celebrizaram como cabo,
 posto que ele jamais alcançou na Força. Nos meses que antecederam o 
golpe de Estado de 1964, o dito cujo presidia a Associação dos 
Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil, agremiação que batalhava por 
uma plataforma democrática e reformista.
Há indícios fartos de que
 já então o falso cabo fosse informante da polícia política (Dops 
carioca), do Centro de Informações da Marinha (Cenimar) e da Central 
Intelligence Agency (a CIA norte-americana).
Só na década de 1970,
 quando o ex-marinheiro se travestia de guerrilheiro de esquerda, seus 
companheiros tiveram certeza de sua condição de infiltrado. No 
derradeiro serviço, Anselmo entregou seis correligionários para a 
repressão matar. Um deles era sua própria mulher, ao que tudo indica 
grávida.
Anselmo está vivo até hoje, quando se transforma em espectro nas manifestações: quem serão os Cabos Anselmo nas ruas do Rio?
Minha
 estupidez não é tamanha a ponto de supor que o desempenho dos 
infiltrados da PM seja igual ao de Anselmo. Muito menos que a conjuntura
 pré-abril de 1964 tenha parentesco com a atual. Mas há uma conformidade
 inegável: antes, supunha-se que Anselmo fosse um bravo militante 
político, quando não era. Até poucos dias atrás, mesmo os mais 
desvairados ativistas dos protestos passavam por legítimos 
manifestantes. Com os vídeos agora conhecidos, descobre-se _ou se 
confirma_ que alguns trabalham para a Polícia Militar.
Uma coisa é colher informações sobre vândalos.
Outra é atacar a tropa, fabricando pretextos para a repressão mais dura.
O que a PM pretende prendendo um repórter da Mídia Ninja? E surrando um fotógrafo?
Talvez as respostas apareçam na próxima passeata.
* Mário Magalhães nasceu no Rio em 1964. Formou-se em 
jornalismo na UFRJ. Trabalhou nos jornais “Folha de S. Paulo”, “O Estado
 de S. Paulo”, “O Globo” e “Tribuna da Imprensa”. Recebeu mais de 20 
prêmios. É autor da biografia “Marighella – O guerrilheiro que incendiou
 o mundo”. 

 
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