Sobre vândalos, vandalismo e a concessão do Maracanã- Por Lúcio de Castro







VANDALISMO-
[Do fr. vandalisme.]
S. m.
1. Ação própria de vândalo.
2. Destruição daquilo que, por sua importância tradicional, pela antiguidade ou pela beleza, merece respeito.
Vandalismo. Foi a palavra mais usada no último mês. Repetida infinitamente e sem parcimônia a cada reportagem ou editorial. Vociferada pelos Jabores da vida. Naquele nível que chega a incomodar. E a parecer coisa bem amarrada. Cachorro mordido de cobra tem medo de linguiça e quem conhece dois tostões da nossa história sabe como essas coisas são... O foco desviado, as repetições que têm por finalidade introjetar uma ideia ou conceito sobre algo, a deturpação na exposição dos fatos... Linguagem e ideologia, como sempre, caminhando lado a lado.

Foi pensando na sistemática repetição de "vandalismo" e "vândalos" no noticiário do último mês que me lembrei de Marilena Chaui no seu já bem distante "Convite à Filosofia", que parece ter sido escrito ontem. "Sem deixar que os sujeitos envolvidos nas ações se manifestem espontaneamente, a ideologia abafa a essência dos acontecimentos (discurso das coisas), valorizando a aparência dos acontecimentos, a interpretação (discurso sobre as coisas)", diz a filósofa.
Tivemos de tudo no último mês. Infiltrados, nazifascistas e ultraconservadores no meio de protestos legítimos. Teve também gente desqualificada cometendo o pecado de apedrejar o Itamarati, o Paço Imperial...Mas destacar isso acima de tudo o que aconteceu nas ruas é Marilena de volta em estado bruto ("a ideologia abafa a essência dos acontecimentos").
Tentar entender tudo isso que acontecia e o foco do noticiário no "vandalismo" era antes de qualquer coisa buscar a essência e semântica da tal palavra-chave. Afinal, quem são os grandes vândalos dessa história, quais são os grandes atos de vandalismo? Em que pese, como citado aqui, que nada justifique uma pedra em direção ao colosso que é o Paço Imperial. Que nada tem a ver com a essência do que está na rua.

Responder a essa pergunta é antes de qualquer coisa resgatar o sentido completo da palavra. Por isso esse texto começa com a citação ao velho companheiro Aurélio: VANDALISMO- "Destruição daquilo que, por sua importância tradicional, pela antiguidade ou pela beleza, merece respeito".
Que achado, que descoberta... Tão simples, esteve sempre ali, repousando no velho Aurélio! Pois vandalismo então é "destruição daquilo que, por sua importância tradicional, pela antiguidade ou pela beleza, merece respeito"!!! Resgatado o sentido original e completo, agora podemos partir para tentar entender: quem são os grandes vândalos dessa história, de quem são os grandes atos de vandalismo.
Comecemos pelo Maracanã. Aqui não há espaço para dúvidas. Estamos falando de vandalismo na essência da palavra. Destruíram um bem tombado, passaram por cima da lei, "destruição daquilo que, por sua importância tradicional, pela antiguidade ou pela beleza, merece respeito". Fiz matéria em parceria com Gabriela Moreira comprovando a surreal história de destruição do estádio. Fora da lei. Sem mais. Vandalismo. Quem são os vândalos?

Vale também ver a reunião do conselho consultivo do IPHAN, aqui reconstituída. Os conselheiros não tiverem meias palavras sobre a obra no Maracanã: "Crime".
O gritante caso de vandalismo vai além. Destrói, subtrai e faz uso espúrio do dinheiro público. O seu, meu e nosso. Em um caso único de falta de pudor: um bilhão e quebrados gastos na obra do Maracanã para no dia seguinte ao fim entregar por menos de 600 milhões.

Vale a pena também ver o trecho da entrevista do diretor do novo consórcio Maracanã, João Borba, para Gabriela Moreira. Sem meias palavras, o sujeito que usa como exemplo Wimbledon para padrão de comportamento do torcedor, diz com todas as letras que se as obras não tivessem sido feitas pelo estado não seria um bom negócio para o grupo que ganhou o Maracanã.

Até porque as obras mudaram a arquitetura do estádio, e essas mudanças possibilitaram a elitização expressa no contrato com o novo concessionário. Se linguagem e semântica tem ideologia, a arquitetura, como tudo, também tem. A ação entre amigos está explícita na sem pudor entrevista, com 2m52s. A confissão de que ganharam de presente o estádio depois que nós pagamos a reforma. Sem o que não valeria a pena para a turma do guardanapo e para os que emprestam jatinhos e ganham estádios.
São tantas histórias de destruição do patrimônio público e do seu, meu e nosso por parte do governador-voador. Quem são os vândalos, de quem é o vandalismo? Quem autoriza entrar de helicóptero atirando na favela? Quem autoriza entrar na Maré matando? Quem autoriza jogar bombas de gás num hospital?
A boa matéria de Isabel Clemente na Revista Época no fim de semana, antecipando o acerto com empreiteiras para obra do estado e o resultado de licitações, com parte da mesma turma do Maracanã, é impressionante. Alguma dúvida para responder a pergunta feita aqui tantas vezes? Quem são os vândalos? Quem fez vandalismo? Procure e veja a reportagem, vale a pena.
A história há de botar as coisas no devido lugar. Ela sempre cuida das coisas. Mas como talvez eu não tenha tempo de esperar, gostaria imensamente de ver os preceitos republicanos reinstaurados no meu estado. Antes do inexorável julgamento da história, urge a plena consciência de quem são os maiores vândalos, quem tem feito atos de vandalismo.
E quanto ao Maracanã, não é possível mais existir qualquer dúvida: a farra da concessão tem que ser revista, investigada e julgada. Urgentemente. Para que possamos olhar para frente de cabeça erguida, com a certeza de que o Brasil vai cumprir seu destino imenso da "civilização original", de Darcy Ribeiro. Tropical, mestiça e humanista, como sonhou o gênio da raça. Tantas vezes representada na mistura do antigo Maracanã. E não o que está no projeto de alguns: ser uma República dos Guardanapos.

* Lúcio de Castro é historiador e jornalista na ESPN Brasil

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Alzira Vargas: O parque do abandono

Carta de despedida de Leila Lopes