Marina na tarde de domingo
O AMOR ETERNO PASSEIA DE ÔNIBUS
Marina Colasanti
Vou atribuir esta história ao Rubem Braga. Primeiro,
porque acho que foi ele que me contou há muito tempo. Segundo, porque, se não
foi ele, deveria ter sido, já
que a história tem toda a cara de Rubem Braga.
Pois bem, antigo apaixonado pela praia e observador
atento de seusfreqüentadores, Rubem reparava num casal de velhinhos que todo
dia, ao final da tarde, passeava na calçada. Iam de mãos dadas, olhando as ondas, trocando
umas poucas palavras, sem pressa, como quem já se disse tudo o que havia de
importante para dizer. Às vezeslevavam um cão, outras vezes iam sozinhos. Tinham um ar
doce e apaziguado que encantava Rubem. Afinal, dizia-se o cronista olhando o
casal, o amor é possível e,na nossa pequena medida, pode até mesmo ser eterno.
A vida quis que um dia Rubem conhecesse uma jovem
senhora, a qual se revelaria adiante parente do casal de velhinhos. E foi por
ela, numa tarde em que louvava encantado o amor daqueles dois, que Rubem ficou sabendo a verdade.
Há muito não se amavam, viviam uma vida de fachada por causa dos filhos e
netos. Na verdade, ele a odiava e ela o desprezava.
Lembrei-me desta história ontem, viajando de ônibus.
Sacolejávamo-nos coletivamente irmanados em plena normalidade quando, numa
parada o casal subiu. Eram velhinhos os dois, de uma faixa em que os anos haviam perdido a
definição, e já não tinham idade aparente, transformados apenas em demonstração
de sobrevivência. Cabeças brancas,ossaturas frágeis, uma hesitação nos gestos, e magros.
Assim eram parecidos. E mais além, naquilo que o tempo, trabalhando sobre
os rostos outrora jovens, havia acrescentado, moldando em
carne, rugas e expressão as semelhanças que um refletia sobre o outro, no
interminável jogo de espelhos da convivência.
Pelo retrovisor, o motorista viu-lhes as cabeças brancas
e a fragilidade, e, com imprevisível delicadeza, esperou, para arrancar até que
estivessem seguros. De
esguelha, os passageiros do ônibus olhavam para eles.
Viram quando ele deu a vez para que ela sentasse à janela, quando a ajudou com
a bolsa, repararam no gesto
instintivo com que se aproximaram um do outro no assento.
Vagos sorrisos de ternura suavizaram os lábios dos passageiros do ônibus. Já
não sacolejávamos em plena rotina. Algo de diferente havia acontecido.
Alguns quarteirões adiante ele puxou a cordinha, e
repetiu-se a cerimônia. O motorista esperou solícito. Ele cedeu a vez à mulher,
ajudou-a com a bolsa, foi conduzindo-a pelo braço até a porta, e desceu à sua frente para
ajudá-la a saltar. Ninguém se impacientou. Os que estavam sentados do lado
direito do ônibus ainda ficaram a vê-los na calçada, enquanto se encaminhavam hesitantes, de braço
dado rumo à esquina.
Ao meu lado, o senhor corpulento não resistiu. Sorriu
abertamente, e saiu-se num longo discurso de exaltação do amor e das suas
possibilidades nesse mundo de máquinas e violência. Outros passageiros comentavam entre si. O
coração coletivo daquele ônibus seguia agora mais leve, como se tivesse
assistido à confirmação de um milagre.
Lembrei-me então da história do Rubem. Ele a odiava e ela
o desprezava. Nada, além dos gestos delicados, garantia à pequena população do
ônibus que aquele casal se amava realmente. E os gestos delicados podem ser
apenas reflexo de formação, como demonstra qualquer mordomo. O amor encontra
outros meios de se manifestar. Mas nós vimos aquilo que queríamos ver. Para as pessoas todas
que ali estavam, de repente tornou-se importante acreditar que o casal de
velhinhos se amava, se não com a mesma violência, pelo menos com a mesma ternura com que
havia começado a se amar tantos anos antes.
Já não se tratava dos velhinhos pessoalmente. Eles
haviam-se transformado em símbolo. Cada passageiro daquele ônibus via neles a
sua própria possibilidade de amar e ser amado até a decrepitude, até o fim da vida. Na manhã antes
insípida, os velhinhos encarnavam o mito do amor eterno. E o mito passeava de
ônibus, para que todos o vissem,e levassem adiante a boa nova.
Talvez, discretos, meus companheiros de viagem não tenham
saído por aí alardeando o acontecido. Mas é certo que se sentiram
reconfortados, e de si para si cada um
murmurou por um instante: "O amor eterno existe. Eu
vi um."
1986
Do livro:"Eu sei,mas não devia"
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