Quem precisa de mais uma loja da Nike?


Gisele Teixeira

Quase todo mundo que vai a Paris visita o Café de Flore, um dia freqüentado por Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, Hemingway e Picasso. Em Praga, acha um jeito de conhecer o Café Slavia, onde se sentaram Franz Kafka e Rainer Maria Rilke. O destino é São Petersburgo? Parada no Literary Café, para desfrutar da mesma atmosfera que inspirou Dostoievsky.Em Buenos Aires, o café predileto de Jorge Luis Borges não existe mais.
A Confeitaria Richmond, inaugurada em 1917, foi fechada este mês de maneira atabalhoada para dar lugar a uma loja da Nike. O café, freqüentado também por Graham Greene – e mencionado na obra O Cônsul Honorário, de 1973, vai vender tênis de corrida!
O esvaziamento foi feito de forma covarde durante um domingo chuvoso.Os vidros foram pintados com cal para ninguém ver o que se passava dentro.
Os funcionários, muitos deles com mais de 30 anos de casa, terminaram o turno no sábado à noite e quando voltaram na segunda-feira deram com a cara na porta. Tinham levado tudo, dos móveis aos objetos pessoais que estavam nos lockers dos banheiros.
O café, um dos locais mais tradicionais da calle Florida, tinha 1500m2 e foi projetado em estilo inglês pelo arquiteto belga Jules Dormal (o mesmo que finalizou o Teatro Colón). Era equipado com cadeiras Chesterfield forradas em couro, mesas Thonet e lustres de bronze e opalina trazidos da Holanda.
Mais do que isso, a Richmond era parte da história literária da cidade. Em 1920 e nos anos seguintes, Borges, então com 25 anos, reunia-se todos os dias no local com os demais escritores do chamado grupo Florida, como Oliverio Girondo e Leopoldo Marechal.
Anos mais tarde, em "Rayuela", o escritor argentino Julio Cortázar pôs um de seus personagens tomando café na tradicional cafeteria, que também foi cenário de A Historia Oficial, vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.
Em 1988, o local foi incluído entre os 60 cafés notáveis de Buenos Aires, como o Tortoni, o 36 Billares, o Gato Negro, o Britânico e o La Biela. Todos eleitos por serem “irremplazables”, insubstituíveis, por seu valor histórico, permanência e arquitetura de interesse. Não adiantou muito.
Mas nem tudo está perdido. Como no ano passado a mobilização popular obrigou o Citibank a devolver o nome do Teatro Opera, os portenhos estão mais organizados em defesa do seu patrimônio, especialmente por meio da ONG Basta de Demoler.
Depois de abraço simbólico, gritaria e ações judiciais, um juiz proibiu, na sexta-feira passada, que se faça qualquer modificação, restauração ou alteração na estrutura e fachada da Richmond, incluindo o mobiliário, que deve ser devolvido. O prédio ganhou custódia policial durante as 24 horas.
Pode ser que se possa recuperar a Richmond. Mas pode ser que não.
Tem gente que prefere uma camiseta “dry fit” a um café com Borges. Infelizmente.



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