Crônica de sábado


Genuíno sim, ingênuo não

Walnize Carvalho

Mesmo que a cada temporada de veraneio vá se tornando uma figura cada
vez mais rara, ainda se encontra este personagem circulando pela
praia.
Digo personagem, mas há de se fazer uma ressalva. Ele é o que é, sem
se atrelar a modismos, a fazer caras e bocas e nem reproduzir
personagens da tevê. Vive a sua vidinha de simplicidade e sabedoria.
Em sua maioria, veio de algum distrito da baixada campista passar os
meses de calor (janeiro, fevereiro e março) ou já há algum tempo fixou
residência por aqui.
Dirige-se cedo à padaria e, ao passar por nosso portão, nos saúda com
afetuoso bom dia (há os que até tiram o chapéu completando a
saudação).
Entre nove e onze horas da manhã vai “espiar” o mar, faz sinal da
cruz em atitude de respeito e se este está bravio apenas molha os pés.
E, se as ondas estão cheias fica a admirar e - vez por outra- anda
lentamente em sua direção e refresca o corpo.
Não leva a parafernália dos veranistas: barraca, toalha, cadeira,
protetor solar, máquina fotográfica, celular, nem dinheiro para comes
e bebes. Apenas está ali para se banhar.
Após o almoço, a sesta na rede da varanda é sagrada.
O lanche, lá para as três horas, é feito de iguarias da região, como:
batata doce, banana figo, tapioca e aipim.
Às quatro horas já está em companhia de alguns amigos jogando
víspora, escopa de quinze, buraco regado a risos e comentários.
Caminha em direção ao mar lá pelas cinco (alguns, de mãos dadas como
os netos) para o banho da tarde.
Quando a tardinha cai, vai ao porto ver a chegada dos barcos e
conferir a pescaria.
Retorna ao lar e em atitude de contrição, ouve a “Oração da Ave
Maria”, bebe o copo d’água, que estava ao lado do rádio cumprindo
assim o prazeroso ritual de fé.
Lá para as sete da noite, senta-se à mesa e degusta a
última refeição do dia.
Após o jantar ajeita cadeiras e bancos na varanda e
reunido com a família tece comentários do dia ou conta histórias de
como era a praia do Farol de São Thomé em tempos idos: barulho do mar
que ouvia ao adormecer, a cura de beri-beri dos seus antepassados...
Graças ao rádio de pilha (que fica ligado quase o dia inteiro) sabe
de todas as notícias.
Nas conversas com os da cidade dá para se sentir que é antenado e
não alienado, ainda que com seu linguajar próprio confunda nomes e
expressões.
Assim é o perfil do interiorano: genuíno porque não
perde a autenticidade, ao mesmo tempo, que não é ingênuo, pois sabe o
que está acontecendo à sua volta.
Retrato de uma parte do Brasil espalhada por todas "as praias" deste
país tropical.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Alzira Vargas: O parque do abandono

Carta de despedida de Leila Lopes