Um verdadeiro retrocesso

As campanhas políticas, especialmente no Brasil, são ricas em distorções semânticas e em abusos de retórica. Os candidatos- alguns mais do que outros, é bom que se diga- atribuem aos adversários intenções que eles nunca tiveram , crenças que nunca defenderam e ações que nunca realizaram.
A palavra-chave que os seguidores do presidente Lula resolveram usar para demonizar o adversário foi a ameaça de “retrocesso” que a sua vitória representaria. A palavra “retrocesso” foi usada como espantalho, mesmo sem nenhum esclarecimento sobre o que seria o seu verdadeiro conteúdo semântico.Simplesmente “retrocesso” virou carimbo desqualificador, dispensando o uso de provas ou argumentos que lhe dessem significado.
Retrocesso seria acabar com os programas sociais, como o Bolsa Família e o ProUni. Mas qual é a evidência disso? Em que documento essa intenção está declarada? Confundir a ação direta de inconstitucionalidade que o DEM apresentou contra os aspectos raciais da lei que instituiu o ProUni com uma ação para acabar com o ProUni é uma certa falta de rigor intelectual, uma forma de distorção que passa tranquilamente batida no fragor de uma disputa eleitoral transformada propositalmente em batalha de vida ou morte.
Retrocesso seria privatizar a Petrobrás. Mas quem quer privatizar a Petrobrás? Atribuir ao adversário intenções que ele nunca manifestou não seria uma forma mais grave e mais concreta de retrocesso? Confundir propositalmente o sistema de concessões de exploração- que esse mesmo governo petista usou à exaustão e com excelentes resultados- com privatização é outra manifestação de desonestidade intelectual que também passa batida no festival de embromações em que se transformaram a propaganda no horário eleitoral e os duelos autistas dos candidatos nos debates engessados e paralisantes da TV.
Enquanto se divertia criando fantasias sobre retrocessos para fins eleitorais, o governo aproveitava a distração geral da opinião pública com os fogos de artifício da campanha, para cometer, de verdade, aquele que talvez tenha sido o maior retrocesso nas contas públicas na última década, criando uma verdadeira herança maldita para o próximo governo administrar.O passe de mágica consistiu no seguinte: criar um superávit primário recorde (no lugar daquele que seria um déficit recorde) com o troco do dinheiro criado com emissão de títulos da dívida pública com que o governo pagou a sua cota na capitalização da Petrobrás.Mais ou menos como pegar dinheiro emprestado no banco para pagar a fatura do cartão de crédito,mostrar a fatura quitada e esconder a promissória assumida.
A “gambiarra”,como a classificou o especialista em contas públicas Raul Velloso, consistiu no seguinte, usando a explicação didática de Miriam Leitão: o Tesouro emitiu R$ 74,8 bi em dívida pública; usou R$ 42,9 bi para subscrever ações da Petrobrás; o resto,R$ 31,9 bi,foi transferido ao BNDES e ao Fundo Soberano; BNDES e Fundo repassaram esses títulos á Petrobrás para pagar ações que compraram; com todos esses títulos, a Petrobrás pagou a cessão onerosa dos barris de petróleo da parte pertencente à União nas reservas do pré-sal; o governo descontou o dinheiro que gastou na subscrição de ações e considerou que o restante, R$ 31,9 bi, era receita.E assim usou uma dívida como receita e transformou um déficit que seria de 5,8 bi em um superávit recorde de 21,6 bi.
Há retrocessos e retrocessos.

Sandro Vaia

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