O PT esqueceu os trabalhadores

A posição da mídia nativa em relação ao Caso Palocci intriga os meus inquietos botões. Há quem claramente pretenda criar confusão. Outros tomam o partido do chefe da Casa Civil. Deste ponto de vista a Veja chega aos píncaros: Palocci em Brasília é o paladino da razão e se puxar seus cadarços vai levitar.
Ocorre que Antonio Palocci tornou-se um caso à parte ao ocupar um cargo determinante como a chefia da Casa Civil, mas com perfil diferente daqueles que o precederam na Presidência de Lula. José Dirceu acabou pregado na cruz. Dilma foi criticada com extrema aspereza inúmeras vezes e sofreu insinuações e acusações descabidas sem conta. A bem da sacrossanta verdade factual, ainda no Ministério da Fazenda o ex-prefeito de Ribeirão Preto deu para ser apreciado pelo chamado establishment e seu instrumento, a mídia nativa.

As ações de Palocci despencaram quando surgiu em cena o caseiro Francenildo, e talvez nada disso ocorresse em outra circunstância, porque aquele entrecho era lenha no fogo da campanha feroz contra a reeleição de Lula. Sabe-se, e não faltam provas a respeito, de que uma contenda surda desenrolava-se dentro do governo entre Palocci e José Dirceu. Consta que o atual chefe da Casa Civil e Dilma não se bicavam durante o segundo mandato de Lula, o qual seria enfim patrocinador do seu retorno à ribalta.
E com poderes largos, como grande conselheiro, negociador junto à turma graúda, interlocutor privilegiado do mercado financeiro e do empresariado, a contar com a simpatia de amplos setores da mídia nativa. Um ex-trotskista virou figura querida do establishment, vale dizer com todas as letras. Ele trafega com a devida solenidade pelas páginas impressas e nos vídeos, mas é convenientemente escondido quando é preciso, como se envergasse um uniforme mimético a disfarçá-lo na selva da política.
Murmuram os botões, em tom sinistro e ao mesmo tempo conformado: pois é, a política… Está claro que se Lula volta à cena para orquestrar a defesa de Palocci com a colaboração de figuras imponentes como José Sarney, o propósito é interferir no jogo do poder ameaçado e garantir a estabilidade do governo de Dilma Rousseff, fragilizado nesta circunstância.

A explicação basta? Os botões negam. CartaCapital sempre se postou contra a busca do poder pelo poder por entender que a política também há de ser pautada pela moral e pela ética, igual a toda atividade humana. Fatti non foste a viver come bruti, disse Dante Alighieri. Traduzo livremente: vocês não foram criados para praticar, embrutecidos, a lei do mais forte. Nós de CartaCapital poderemos ser tachados de ingênuos, ou iludidos nesta nossa crença, mas a consideramos inerente à prática do jornalismo.
 No tempo de FHC, cumprimos a tarefa ao denunciar as mazelas daqueles que Palocci diz imitar, na aparente certeza de que, por causa disso, merece a indulgência plenária. Luiz Carlos Mendonça de Barros, André Lara Rezende, e outros fortemente enriquecidos ao deixarem o governo graças ao uso desabrido da inside information, foram alvo de CartaCapital, e condenados sem apelação. Somos de coerência solar ao mirar agora em Antonio Palocci.
Em outra época, os vilões foram tucanos. Chegou a hora do PT, um partido que, alcançado o poder, se portou como os demais, clubes armados para o deleite dos representantes da minoria privilegiada. Devo dizer que conheço muito bem a história do Partido dos Trabalhadores. A primeira reportagem de capa publicada por uma semanal sobre a liderança nascente de Luiz Inácio da Silva, dito o Lula, remonta a começos de fevereiro de 1978. IstoÉ foi a revista, eu a dirigia. Escrevi a reportagem e em parceria com Bernardo Lerer entrevistei o então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, na vanguarda de um sindicalismo oposto ao dos pelegos.

Dizia a chamada de capa, estampada sobre o rosto volitivo do jovem líder: Lula e os Trabalhadores do Brasil. Já então sabia do seu projeto, criar um partido para defender pobres e miseráveis do País. Acompanhei a trajetória petista passo a passo e ao fundar o Jornal da República, que nasceu e morreu comigo depois de menos de cinco meses de vida, fracasso esculpido por Michelangelo em dia de desbordante inspiração, passei a publicar diariamente uma página dedicada ao trabalho, onde escreviam os novos representantes do sindicalismo brasileiro. Ao longo do caminho, o partido soube retocar seu ideário conforme tempos diferentes, mas permaneceu fiel aos propósitos iniciais e como agremiação distinta das demais surgidas da reforma partidária de 1979, marcado por um senso de honestidade e responsabilidade insólito no nosso cenário.
Antonio Palocci é apenas um exemplo de uma pretensa e lamentável modernidade, transformação que nega o passado digno para mergulhar em um presente que iguala o PT a todos os demais. Parece não haver no Brasil outro exemplo aplicável de partido do poder, é a conclusão inescapável. Perguntam os botões desolados: onde sobraram os trabalhadores? Uma agremiação surgida para fazer do trabalho a sua razão de ser, passa a cuidar dos interesses do lado oposto. Não se trataria, aliás, de fomentar o conflito, pelo contrário, de achar o ponto de encontro, como o próprio Lula conseguiu como atilado negociador na presidência do sindicato.

Há muito tempo, confesso, tenho dúvidas a respeito da realidade de uma esquerda brasileira, ao longo da chamada redemocratização e esgotadas outras épocas em que certos confrontos em andamento no mundo ecoavam por aqui. Tendo a crer, no momento, que a esquerda nativa é uma criação de fantasia, como a marca da Coca-Cola, que, aliás, o mítico Che Guevara bebia ironicamente às talagadas na Conferência da OEA, em 1961, em Punta del Este. Quanto à ideologia, contento-me com a tese de Norberto Bobbio: esquerdista hoje em dia é quem, aspirante à igualdade certo da insuficiência da simples liberdade exposta ao assalto do poderoso, luta a favor dos desvalidos. Incrível: até por razões práticas, a bem de um capitalismo necessitado de consumidores.
Nem a tanto se inclina a atual esquerda verde-amarela, na qual milita, digamos, o ultracomunista Aldo Rebelo, disposto a anistiar os vândalos da desmatação. E como não anistiar o ex-camarada Palocci? Lula fez um bom governo, talvez o melhor da história da República, graças a uma política exterior pela primeira vez independente e ao empenho a favor dos pobres e dos miseráveis, fartamente demonstrado. CartaCapital não regateou louvores a estes desempenhos, embora notasse as divergências que dividem o PT em nome de hipócritas interpretações de uma ideologia primária.
Na opinião de CartaCapital, e dos meus botões, não é tarefa de Lula defender o indefensável Antonio Palocci, e sim de ajudar a presidenta Dilma a repor as coisas em ordem, pelos mesmos caminhos que em 2002 o levaram à Presidência com todos os méritos.

Mino Carta é diretor de redação de CartaCapital. Fundou as revistas Quatro Rodas, Veja e CartaCapital. Foi diretor de Redação das revistas Senhor e IstoÉ. Criou a Edição de Esportes do jornal O Estado de S. Paulo, criou e dirigiu o Jornal da Tarde.

Comentários

Claudio Kezen disse…
Quem? Eu ou o Mino Carta?
todos os que ousam criticar este governo!!
Claudio Kezen disse…
fala sério, gustavo... ou seu perfil foi clonado ou vc tá viajando...

se for o primeiro caso minhas desculpas, mas se for o segundo caso, não fode!
Roberto Torres disse…
A ironia do Gustavo é bem feita, só que fora de contexto. Ora, os blogs pro-governo tem sido muito mais críticos e ácidos com o Palocci do que o oglobo, folha e estadao juntos.

Porque a revista época, ao invés de fazer coro no trabalho investigativo sobre a "consultoria" do ministro e sobre seus clientes, prefere investigar a saúde da presidente Dilma? E, contrariando tudo o que foi possível dizer sobre o assunto, colocar uma foto da presidenta como se ela já fosse um defunto?

Eu já cheguei a rejeitar o uso do conceito de PIG, mas ao constatar que o partido de oposicao no Brasil hoje é a mídia, que pauta a oposicao partidária, e que esta mídia assim faz política dizendo que faz jornalismo, nao vejo termo melhor. Golpismo é fazer política nos bastidores, jogar o jogo da política portanto, e aparecer em público dizendo que se faz jornalismo imparcial.
Claudio Kezen disse…
Roberto, pessoalmente não vejo ironia no comentário do Gustavo, apenas um rugido raivoso. Nenhum governo está acima da crítica. Neste caso particularmente, há fortes indícios de que quem alimentou a mídia, que em última análise pauta esta oposição absurdamente desqualificada foi um famoso quadro do próprio PT. Eu deixo a pergunta: quem é o golpista?
Anônimo disse…
Excelente postagem, Claudio.
Mas ainda nas observações feitas em seu comentário.
Boa semana.
Roberto Torres disse…
Golpista é quem tem história de golpear a política democrática, de jogar a política para os bastidores, nos quais se pode levar a melhor sem controle do público.

O PT pode ser mesmo hoje mais um partido como os outros, mas quem tem história viva de golpismo é a grande mídia. O negociacao do Brasileirao 2011 mostra isso, ou nao?

Nao digo golpismo contra o PT, nao! É golpismo contra a política. Só vale politizar o teatro oficial da política, mas nao vale politizar os bastidores, a política mais silenciosa e eficaz, onde a mídia e os interesses corporativos privados fazem política.
Claudio Kezen disse…
Concordo Roberto, no entanto lembro que o link entre "a mídia e os interesses corporativos privados que joga a política para os bastidores" e a conquista dos seus objetivos finais muitas vezes são agentes políticos com e sem mandato de vários partidos, inclusive o PT.

No caso do brasileirão e do escândalo anunciado da Copa/Olimpíadas que vem por aí por exemplo, a omissão/anuência do Sr Ministro dos Esportes e demais autoridades constituídas, inclusive a presidente Dilma, é a mais cabal prova de que a máfia da CBF (interesses corporativos privados/grandes empreiteiras, etc...) não só circula com desenvoltura em todas as esferas do poder público, mas é bem-vinda e "vendida" como algo inevitável em nome da boa imagem do Brasil.

O mesmo se dá em relação ao Palocci, agente e vetor ele mesmo da confluência entre interesses corporativos privados e ganhos pecuniários pessoais.

Entendo sua preocupação em relação à preservação da política como atividade/teatro democráticos e transparentes, mas covenhamos os próprios políticos não colaboram.

Um abraço.
Roberto Torres disse…
Pois é. Sei que é uma discussao meio besta, mas nao culpo tanto assim os políticos. Já tem gente demais pra fazer isso. É preciso olhar a lógica que reproduz este tipo de relacao - que alias nao é nenhuma peculiaridade brasileira (FIFA/Blatter).

Daqui a uns 15 anos serao outros políticos os culpados, talvez do PSDB, talvez do PSB, sei lá. Mas a lógica, que a nossa mídia nao tem interesse em politizar e tornar tema de escândalo, justamente porque está em suas próprias entranhas, contiuaná quase a mesma.

Se, como dizem muitos, existe hoje uma demanda de valores na sociedade incapaz de ser correspondida pelo sistema político e partidário que temos, o mesmo vale para a mídia, que é um partido.
Gustavo Rangel disse…
Cláudio, acho que confundiu-me
Gustavo é um nome relativamente comum, mas o meu tá com sobrenome
abs
kkkk

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