São Sebastião ainda olha por nós e algumas considerações- Lúcio de Castro

São Sebastião coberto de flechas não chega a ser uma imagem nova. Nascemos assim, em meio ao caos de uma guerra entre franceses e tupinambás de um lado e do outro, portugueses em aliança com os temiminós. É a mui leal e heróica cidade do Rio de Janeiro, linda, encantadora, maltratada, “purgatório da beleza e do caos”. Foi no meio desse caos que uma das mais fantásticas civilizações se estabeleceu.

A civilização da vida que se dá e se reiventa na rua, estabelecida a revelia de quem negava vida e cidadania ao povo. A porta se fechava, o direito a vida em plenitude se negava? Tome vida, vida em plenitude de troco. Soavam os tambores do samba, da capoeira, por Iemanjá, reinventava-se a vida. Na fresta, definição brilhantemente cunhada pelo historiador Luiz Antônio Simas, contra tudo e todos, floresceu a civilização que deu ao mundo Pixinguinha, Lima Barreto, Zico, Cartola, Machado, Mané, Noel, Zeca, Leônidas, Di Cavalcanti, Romário, Vinícius, o samba, e tantos outros gênios da raça.

Estivemos sitiados outras vezes. Em 1560, em 1567...Batalhas intermináveis forjaram um pouco dessa história, testemunhadas nas ladeiras da Pedra do Sal e nas águas da baía. De todas essas guerras, ergueu-se uma cidade mais forte, sempre. É preciso analisar todos os aspectos dos acontecimentos de agora. Ponto por ponto, serenamente, e iremos a alguns aqui. Mas sempre com o lembrete de que não se cometa o erro do veredito definitivo e contra a “mui leal e heróica”. Por aqui os dados rolam sempre, e a força de uma civilização construída em bases tão fortes, com história tão monumental não se rompe assim de um dia para o outro. Bateram o martelo tantas vezes contra o Rio e sua gente. Apressados.

“Enterre-se o futebol carioca” (quanta bobagem se falou nesses anos? Quantos programas de tv feitos para analisar o fim do futebol por aqui...quanta pressa, quanta análise superficial...Como se os dramas do futebol carioca não fossem os mesmos de todo o Brasil...) “Enterre-se a cidade”. Enterre-se a economia”. “Enterre-se esse povinho”. E lá vinha São Sebastião do Rio de Janeiro, reinventada, melhor. É preciso refletir, pensar, reconhecer os dramas. Mas sem vereditos definitivos. A história dessa gente não permite.

Dito tudo isso, ou como diria a voz do boteco, feita a ressalva do “muita calma nessa hora”, vale pensar algumas coisas sobre os acontecimentos dessa quinta, 25 de novembro. Sem a pretensão de dono da verdade, sem conhecimento ou pretensão científica, apenas o livre pensar de um coração vagabundo que ama esse lugar. Alguns pontos desse modesto livre pensar:

- A primeira óbvia constatação é a de que nenhum cidadão cumpridor, pagador dos seus impostos e que não vive ao arrepio da lei é contra a retomada de territórios pelo estado da mão de bandidos. Ponto. O apoio para isso é incondicional. Daí a considerar que as UPPs, da forma como concebidas e executadas, e da forma como estão hoje são o caminho para isso, vai uma enorme distância.

- Por razões simples e matemáticas. Uma questão de escala. Escala é a palavra chave para entendermos tal questão e saber se as UPPs, da forma como são hoje, são o melhor caminho para isso. É simples: São cerca de 1.020 favelas no Rio de Janeiro. Hoje as UPPs estão em 14 delas. Faltam apenas 1.006. Mais números: quase quatro mil policiais estão hoje no contingente das UPPs. Mais ou menos 10% do efetivo total. Se 1% das favelas tem UPP, a conclusão é óbvia: falta escala para que o trabalho se amplie, ainda que pelas projeções, até a Copa de 2014, cerca de 40 favelas estejam na mira das pacificações. Ainda assim, ficariam faltando apenas 980 favelas.

- Portanto, que UPPs são positivas (desde que acompanhadas de políticas sociais) é ponto pacífico. Apresentá-las como solução geral e confundir tais unidades com política de segurança como quiseram as autoridades é que foi o grande equívoco, embarcado por tantos. Por uma razão matemática...

- A segunda conclusão é óbvia também e parece, na verdade, ser do gosto do governo estadual do Rio: se apenas algumas favelas sofrem intervenção, e até o modus operandi de ocupação propicia isso, é claro que bandidos saíram de algumas para migrar a outras. E tudo continuará assim: uma área da cidade escolhida para tal faxina e o resto pegando fogo. Algo para inglês ver. No caso, pensando em Copa 2014 e Olimpíadas, inglês, alemão, americano...

- A experiência de varrer a pobreza, o crime e o que esses governantes consideram sujar a cidade para baixo do tapete não é nova. Se alguém não conhece a história, basta ver “Cidade de Deus”. Gente varrida pra longe de seus lugares para não incomodar a zona sul e as pessoas de maior poder aquisitivo. Tal estratégia peca sempre por um detalhe: assim como os adversários esqueciam de combinar planos de marcação com Garrincha, falta sempre combinar com quem é varrido pra baixo do tapete que ele deve ficar ali. Já comentei até nesse blog isso: um dia sempre saem debaixo do tapete levando revolta e sede de revanche.

- A questão da escala numa “guerra” não tem nada a ver com ideologia ou escolha de lado. É matemática pura. Exonerado por Obama recentemente entre outras coisas por falar demais, o general Stanley McCrystal, comandante tido como brilhante no Afeganistão, cansou de avisar que os Estados Unidos estavam se metendo em um novo pântano, um novo Vietnã. Falta escala para derrotarem o inimigo. Depois de nove anos de guerra e milhares de baixas, o general concluiu que os 65 mil soldados americanos atuais eram pouco. Uma escala insuficiente para derrotar o inimigo. Pelas suas contas, faltam mais 40 mil soldados para tirar o país do atoleiro. Na dúvida, Obama tirou o general. O atoleiro prossegue. No Rio falta escala para as UPPs. (falta política de segurança, falta política educacional...Como no resto do Brasil). O atoleiro prossegue.

- Apesar da escala insuficiente para ter êxito, as UPPs, localizadas preferencialmente nas zonas mais abastadas e no coração da classe média, ganharam corações, mentes e uma eleição. Ainda que desde sempre também não fosse completada por um programa social de reintegração na sociedade de quem pode ainda ser reintegrado, deixando mesmo apenas a opção de ir para baixo de algum tapete no subúrbio ou na baixada fluminense. Aqui vale mais uma informação, publicada em matéria da Revista Piauí: as UPPs foram um dos maiores casos de marketing dos últimos anos. Segundo a Revista, os “serviços de comunicação e divulgação” da secretaria de segurança do Rio saltaram de 66,9 milhões para 91,7 milhões de reais. O secretário José Beltrame promoveu 138 almoços com “formadores de opinião” desde a posse, e deu 223 entrevistas, sendo que 39 para a imprensa estrangeira, tendo as UPPs como vedetes na pauta.

- Dessa forma, tudo andava bem. As coisas seguiriam nesse grande acordão, como tantas vezes se fez em nossa política. Viriam 2014, 2016, e a política de segurança seria um sucesso, elevando até o status de governadores a candidaturas maiores. - O conflito, indesejado por quem preferia e queria o velho acordão de varrer pra baixo do tapete acabou sendo inevitável e explodiu.

- Luiz Eduardo Soares, sociólogo, um dos maiores pensadores de segurança pública do país e autor de “Elite da Tropa” tocou em outro ponto definitivo recentemente. Muito antes das UPPs, teria que vir uma mudança geral na polícia do Rio. Sem a qual não faz sentido pensar em qualquer outra ação. O questionamento é de Luiz Eduardo Soares: “Como dar escala às UPPs sem mudar as polícias, fontes do pior mal, da pior ameaça à segurança, que são as milícias (que já suplantaram o tráfico em relevância, força, lucros, poder político e presença física no estado)? De que adianta combater um ou outro tipo de crime, como o tráfico de drogas, se a realidade é que as polícias fluminenses se converteram em incubadoras do crime organizado e sob a mais grave das formas”?

- Bravatas à parte das autoridades falando em sucesso absoluto na ação, a necessidade de maior uso da inteligência da polícia ficou latente na tarde dessa quinta.

- Certo também é que a notícia recebe tratamento ao gosto do freguês quando existe aliança política, aqui escancarada. Quem se lembra do tratamento ao estado do Rio e a segurança nos anos do governo Brizola e vê agora a notícia ao vivo, nas ondas do Globocop deve achar que está em outro estado. Na dúvida, apesar da evidente imagem de 200 bandidos saindo em fila indiana e ilesos de uma ação, o Jornal Nacional fez questão de expressar seu conceito sobre a ação. Existia um “comentarista de violência” na bancada, mas não veio dele a expressão “bem sucedida ação”, repetida por três (3) vezes pela dupla de apresentadores, com pausas. Para que ficasse bem clara e ganhasse corações e mentes, veio editorializada, na boca dos apresentadores: “a bem sucedida ação...”. Fora os editoriais, o trabalho dos profissionais na rua, como de hábito, é digno de elogios.

- O mais curioso veio depois, na Globo News: todos os comentaristas do caso eram cuidadosamente escolhidos para servir o sabor ao gosto do chefe. Quando de repente entra Guaracy Mingardi, cientista social da USP. “Se um gato é cercado, ele acaba arranhando. E se ele consegue fugir, deu errado o cerco e ele poderá oferecer mais perigo”. O desconforto do apresentador foi tão grande que a pressa em mudar de tom fez com que atropelasse o sujeito! Espetacular...!

- O fato é que teremos dias pela frente onde a velha política de segurança de esquadrão da morte irá pesar sobre pobres e muitas vezes inocentes, como já começa. Se não teve a competência para a ação no momento apropriado e devido, sem riscos de inocentes, na calada da noite isso vai se seguir nas favelas da vida. Mas de qualquer forma, São Sebastião parece que mais uma vez olha por nós. Porque a pasmaceira e a política eleitoreira de jogar pra baixo do tapete parece com os dias contados. Ficou exposta. Algo terá que ser mudado. Ao certo, sei apenas que o Rio seguirá. Como sempre seguiu. Nas ruas, na festa, na fresta, no botequim, na favela, na praia, na pelada, no futebol, na sua gente e na civilização de Cartola, Candeia, Pixinga e Noel. Que São Sebastião nos abençoe. Amém.

Ps- escrevo apenas como um sujeito que ama sua cidade, seu país, sua gente. Um curioso que se sente na obrigação cidadã de falar nessa hora. Esse texto estava pronto quando o já citado aqui Luiz Eduardo Soares escreveu sobre o assunto. Mostrando o absurdo de uma política de conflito sem qualquer inteligência, carecendo de uma limpeza profunda. Seu texto culmina com o trecho abaixo, algo que tanto tinha me chamado a atenção. Feliz com a boa companhia, reproduzo o trecho.

“O Jornal Nacional, nesta quinta, 25 de novembro, definiu o caos no Rio de Janeiro, salpicado de cenas de guerra e morte, pânico e desespero, como um dia histórico de vitória: o dia em que as polícias ocuparam a Vila Cruzeiro. Ou eu sofri um súbito apagão mental e me tornei um idiota contumaz e incorrigível ou os editores do JN sentiram-se autorizados a tratar milhões de telespectadores como contumazes e incorrigíveis idiotas.
Ou se começa a falar sério e levar a sério a tragédia da insegurança pública no Brasil, ou será pelo menos mais digno furtar-se a fazer coro à farsa.” Luiz Eduardo Soares.

Eu de novo: para nós, militantes da área de esporte, cabe um outro trecho. Me sinto em ótima companhia aqui novamente. Sempre achei e disse que esse tipo de acontecimento nada tem a ver com o Copa e Olimpíadas. Não podemos cometer esse erro ingênuo. Os problemas desses eventos são outro$$$. Fala de novo, Luiz Eduardo:

"Conseguiremos realizar com êxito a Copa e as Olimpíadas?
Sem dúvida. Somos ótimos em eventos. Nesses momentos, aparece dinheiro, surge o “espírito cooperativo”, ações racionais e planejadas impõem-se. Nosso calcanhar de Aquiles é a rotina. Copa e Olimpíadas serão um sucesso. O problema é o dia a dia".
Lúcio de Castro é jornalista da equipe da ESPN Brasil.

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