Antes que a morte nos separe- Por Ivan Martins
Enterros, velórios e missas de sétimo
dias são ocasiões que nos fazem pensar, inevitavelmente. Estamos ali,
vivos, na presença física ou espiritual da morte. Em geral, ligados a
ela por alguém amado ou conhecido que se foi. Não dá para evitar a
filosofia nessas horas – e um pouco de medo.
Dias atrás, despedi-me de um conhecido
que partiu antes da hora. Entrei sereno na igreja, reconheci velhos
colegas e me sentei entre eles para esperar a missa. A cerimônia
transcorreu sem sobressaltos até o final, quando o padre deu a palavra à
companheira do morto. Emocionada, mas firme, ela leu umas poucas
palavras ao microfone. Essencialmente, disse que ele talvez não soubesse
o quanto o admiraram, quanto o queriam aqueles que ele deixara para
trás. Foi o que bastou para me inquietar.
Por causa das companhias de seguro, que
vivem nos lembrando da fragilidade da existência, somos levados a
pensar, de vez em quando, sobre o estado material da nossa vida. Se eu
morresse amanhã, o que deixaria para trás? Está tudo certo, estão todos
amparados, os papéis estão em dia? Gente muito jovem não se preocupa com
isso, mas basta ter filhos para que essas ideias, insidiosamente, nos
visitem. É natural e até saudável. Só quem se acha eterno está isento de
preocupações. Os outros temem. Mas não foi isso que me inquietou na
igreja. O que as palavras da viúva evocavam era algo diferente,
imaterial. Ela falava do legado emocional e afetivo do morto. Ela
aludia, em seu breve discurso de despedida, ao que ele deixara
sentimentalmente para trás – de forma incompleta – com os amigos, com a
família, com a mulher. Suas palavras faziam pensar nas relações rompidas
pela morte e no estado das relações com os que ficam. Se morrêssemos
amanhã, o que restaria sem ter sido dito? Muito, eu imagino.
Nossas vidas estão repletas de relações pendentes.
Há o amigo, a ex-namorada, a prima com
quem você não fala há muito tempo, embora isso o inquiete. Questões
grandes ou pequenas esperaram ser resolvidas com o irmão, com o tio, com
a amiga com quem você, talvez, não tenha agido direito. Dentro do
círculo mais íntimo, mesmo ali, persiste a sensação de que nem tudo foi
dito entre pai e filho, entre marido e mulher, entre namorados de longa
data. Na avalanche estúpida das horas que se esvaem, tendemos a adiar
conversas e encontros. Eles não são urgentes, nos parece. Temos todo o
tempo do mundo, nos iludimos. É natural que seja assim.
Tudo o que está vivo é incompleto. Não é
diferente com as relações humanas. Apenas o que acabou emocionalmente
está concluído e encerrado. O resto segue nos assombrando com vírgulas,
reticências e interrogações. Aquilo que está vivo é uma possibilidade.
Somente a morte coloca o ponto final em algumas relações. Naquelas que
mais importam, eu diria. Naquelas que nos inquietam e das quais nos cabe
cuidar. Ao contrário das coisas materiais, é impossível resolver
relações vivas. Elas podem ser cultivadas, saboreadas, vividas, mas não
resolvidas. Elas prosseguem. Nunca haverá a conversa definitiva com
aqueles que a gente ama. Talvez haja a última, mas isso não se sabe.
Sabemos da conversa mais recente, da próxima. Dessas deveríamos cuidar.
Sempre haverá outro programa de televisão, outro filme, outro amigo
chamando ao telefone – mas o momento deste encontro não se repete. As
palavras que trocamos aqui (ou não trocamos) fazem diferença.
O que podemos fazer – e que talvez
devamos fazer – é manter nossas relações em dia. Se alguma coisa trágica
ocorrer, teremos rido juntos ontem, ou falado na semana passada sobre o
filme. Talvez tenhamos discutido ao telefone – é inevitável – mas
dormimos abraçados, conversando baixinho. Lembrei de comprar o presente
no dia certo, liguei aquela noite como prometido, tomamos um porre
medonho na sexta-feira, conversamos longamente no carro durante a
viagem. Andávamos na rua quando a chuva começou. Estivemos felizes,
estivemos bravos, estivemos juntos. Foi bom.
Será que me faço entender?
As coisas materiais têm o poder de nos
obrigar a agir. Os nossos sentimentos, estranhamente, não. Saímos todas
as manhãs para o trabalho, ligamos para o advogado, trocamos emails com
gente chata sobre o projeto que nos interessa. Mas não gastamos uma
fração dessa energia para cuidar de coisas que nos são intimamente
caras: o amigo de quem temos saudades, a ex-namorada que está na pior, a
tia de que gostamos tanto. O cotidiano dos sentimentos e a rotina das
relações são negligenciados. Ou tratados com menos importância do que
deveriam. Ao contrário do que parece, isso não constitui uma traição aos
outros, mas a nós mesmos.
Por isso fiquei inquieto com as palavras da missa.
Tive a impressão de que minhas pendências
são grandes. As contas e os impostos estão pagos, mas a vida emocional
está atrasada. Se eu sumisse hoje, se eu morresse, muitas palavras
ficariam por serem ditas, muitos abraços ficariam no ar. Pessoas
queridas ficariam sem respostas. Tive a impressão, na missa, de que há
muito a fazer antes que a morte nos separe – e que o tempo, afinal, não é
tão longo.
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