Saiba quando o amor começa - Por Xico Sá (Às vezes a gente acha que o amor começa à primeira vista. São os amores mais demorados para pegar no tranco)
André Tambucci (Fotos Públicas)
"Ao ver somente esta semana o imperdível drama erótico Love
(direção Gaspar Noé), refletia, mirando a minha lindeza de oclinhos 3D
na cadeira ao lado do cine Reserva (SP), como havia iniciado algumas
histórias de amor. A do filme começa da forma mais banal do mundo, por
capricho do acaso, troca de olhares de dois belos jovens (os atores Karl
Glusman e Aomi Muyroc) e senta que lá vem cenas calientes ali a um palmo do seu nariz tridimensionado.
Sim, como todo amor de verdade, há tédio, ciúme, melancolia, flerte
com a tragédia, ideia de abismo etc. Mesmo em Paris, esse clichê da lua
de mel eternamente restaurável.
O que interessa no momento, porém, é especular em torno do fiat lux do amor, aquele misterioso Gênesis, o princípio de tudo. Sobre o the end
que encerra a subida dos descréditos na tela amorosa, bem, temos uma
das melhores crônicas desse país de cronistas e conspiradores: O amor acaba, de Paulo Mendes Campos, de 1964 –você encontra em livro homônimo na praça.
E quando o amor começa? O órfão da tempestade, capixaba Carlinhos
Oliveira, outro bamba do gênero, brincou com uma resposta ao mineiro
PMC, nos anos 1960. Várias vezes tentei e escrevi algo também, sem o
talento dessa dupla que admiro.
O filme Love,
algumas taças de vinho e o olhar de minha Zazie no metrô da Paulista,
me reinspiraram nessa peleja. Volto ao infindável tema. O amor começa e
recomeça no cinema. Todo início de amor requer pegar uma tela. Se for
filme de aventura ou comédia, que as duas mãos se encontrem, por acaso,
no mesmo fundo de um saco de pipoca em busca dos últimos farelos. Se for
suspense ou terror, aquele aperto de mão intervalado dita o ritmo da
sístole e diástole. Diante de muito medo, quem sabe, ela deitará pela
primeira vez sobre seu peito, você a receberá como para sempre, ave!.
Às vezes a gente acha que o amor começa à primeira vista.
São os amores mais demorados para pegar no tranco. Parece um
crediário-tentação de 24 prestações naqueles tempos de inflações acima
dos 80% da ditadura e desemprego brasileiro dos anos 1990.
Recordo agora quando escrevi a primeira vez sobre o assunto, ainda inocente, puro e besta e quase virgem em levar tocos e pés na bunda:
O amor começa, vos digo, em uma noite de sexta, a noite do pecado por
excelência, o amor de uma comerciária que saiu de casa de vermelho,
calcinha no capricho, crente que o amor principiaria, ela leu no
horóscopo, Sagitário seu signo, o amor principiaria, qual o Gênesis,
calcinha no esmero, o fiat lux, antes do último ônibus, no
barzinho, na vida simples da música ao vivo, lua cheia, papel crepom,
batata frita, o beijo-ou-não-beijo, “será que ele presta?”, ela indagava
ao cosmo.
Flerte nas redes sociais
Óbvio que o amor pode começar de um simples flerte nas redes sociais,
embora essa historinha me leve a uma conclusão do escritor
norte-americano Jonathan Franzen no livro Como ficar sozinho
(Companhia das Letras, 2012): “O simples fato é que a tentativa de ser
perfeitamente curtível é incompatível com os relacionamentos amorosos”.
Já comecei sim amores em bate-papos de internet, como milhares de
vocês. O meu atual romance, por exemplo, a moça de oclinhos 3D do cinema
desta semana. Se bem que, pensando melhor, era um desejo envelhecido
como meu uísque vagabundo 12 anos. Só o reencontro se deu por meios
virtuais, depois de saber do fim do seu casamento.
Se bem que, pensando melhor ainda, o plá internético é só sopro.
Costuma ser problemático quando fica apenas na virtualidade ou no
lodaçal das mais escorregadias das promessas, mesmo com ensaios
masturbatórios, sem avanços para amar olhos nos olhos (“deixa que minha
mão errante adentre, entre”) e outras pegadas do gênero lírico, poético,
prático...
Encontro d´almas
Há quem aposte que o amor é um encontro de almas, afinal de contas,
como dizia Manuel Bandeira –como se deu mal no amor esse meu tísico
poeta!-, os corpos podem se entender, as almas não. E quando só os
corpos são chegados? O amor físico, ou chamemos essa onda apenas de sexo
selvagem?, também não é uma forma de amar gostoso? Agora me enrolei
todinho na metafísica sofisticada do grandiosíssimo pernambucano.
Então vamos apelar para o jogo das coincidências. Sabe aquele truque
ou sinceridade de curtir mesmo a mesma banda (ainda estou no Love do Arthur Lee, ou Mutantes, quem sabe...), o mesmo escritor (Fup do Jim Dodge?), o mesmo seriado –sigo em Twin Peaks e por isso amo a minha Laura Palmer-, no mesmo cronista Paulo Mendes Campos, embora ache os novíssimos geniais...
Direita ou esquerda? Se for anarco-romântica-comuna-chuta-o-balde, melhor ainda. O jogo das coincidências conta com um certo charme old school, vintage, passadista,
afinal de contas, no jogo das coincidências é importante que você torne
a sua escolha a mais inesperada possível. Poeta preferido? Baudelaire
ou Patativa do Assaré. A preferência não importa. O que vale é a
sustança da pronúncia e da convicção, por mais eclética. Patti Smith?
Amo! Assim comecei um dos amores derradeiros.
O jogo das coincidências fica muito fácil cada um na sua casa, com
direito a buscas. O lindo mesmo, todavia, é o jogo das coincidências
verdadeiro, olho no olho, longe do alcance do Google, quando a gente vê
que a pupila dilata com o colírio da mesma forma de ver o mundo
O começo do amor depende muito desse capítulo inicial, quase um
prefácio obrigatório, mesmo que depois tudo isso vire apenas um jogo dos
contrários. Ficar com tesão ao ver o filme Love, yes, pode ser
um belo princípio. Convide a moça, convide o rapaz, afinal de contas é
raro um drama que case o tesão do pornô com sinceros, embevecidos e
enlevados sentimentos. Rende assunto e, quem sabe, uma trepada homérica
capaz de curar o amor platônico, como sempre me repete, em eco sem fim, o
poeta marginal Eduardo Kac.
Ah, cuidado ao brincar de triângulo amoroso, a vítima pode ser você. É
outro grande momento do filme. E dito isto não terei entregue nem 10%
da fita. Imagina."
Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de Um cão vadio aos pés de uma mulher-abismo (editora Fina Flor), entre outros livros.
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