Para a manhã de domingo


Desenho animado
Fabrício Carpinejar

Quando a gente gosta, a gente cuida. Cuida mais do que devia. Gostar é se prevenir do desgosto. A gente nunca sabe o que é suficiente, a gente vai se doando, se gastando, sem pedir troco. A gente gasta mais do que se tem e corre atrás para imaginar o que não se viveu para não fazer falta na memória mais adiante. Quando a gente gosta, é um exagero de gosto, é falar para levar o casaco porque pode fazer frio, é chamar atenção sem motivo, é fazer escândalo no telefone em pleno trabalho. Quando a gente gosta, a timidez fica sem chances de escapar. Quando a gente gosta, o que não se gosta é suportado com gosto.
Quando a gente gosta, a gente diz que nunca mais vai repetir e repete, porque gostar não é promessa, é quebrar promessas com os dedos cruzados nos lábios. Quando a gente gosta, os segredos são música sem letra, adivinhação de pernas na mesa. Quando a gente gosta, somos personagens do gosto mais do que autor dele. Não mandamos no gosto, o gosto nos suporta. Quando a gente gosta, a gente começa emprestando um livro, depois um casaco, um guarda-chuva, até que somos mais emprestados do que devolvidos. A gente dorme uma noite fora de casa, duas noites, até que a gente leva a casa para dormir com a gente. Gostar é não devolver, é se endividar de lembranças. Quando a gente gosta, pratica-se a arte de não ficar calado. A arte de não ficar calado é bruxismo de gente acordada. Os dentes ficam com fundo de prato para soprar a comida. Quando a gente gosta, a neblina faz o rio encurvar mais cedo. Quando a gente gosta, há sempre um nome na aliança contornado de sabão seco. A aliança faz espuma de mãos dadas. Quando a gente gosta, tudo é importante, as inutilidades ainda mais. Quando a gente gosta, come-se a luz de boca aberta. Quando a gente gosta, guardamos os botões caídos das roupas como brincos. Quando a gente gosta, a gente recomenda a nossa idade como a mais sábia. A gente gosta de ter razão, mas não ter razão só aumenta o gosto. Quando a gente gosta, levar o lixo ou conferir se as portas estão fechadas é uma longa negociação de gostos. Quando a gente gosta, separamos o feijão em uma bacia com água e ficamos com pena dos grãos debochados e incluímos juntos para a fome não ver. Quando a gente gosta, é natural até se gostar menos para reservar lugar a quem gostamos.


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