Depois do Samba cantado e dançado...


...afinal acabou o carnaval, a dica é ler :"Samba Falado" crônicas musicais de Vinicius de Moraes

"A faceta de cronista talvez seja a menos célebre entre as tantas que assumiu, ao longo dos 66 anos de vida, o cantor,poeta, compositor e diplomata Vinicius de Moraes. Da crônica, Vinicius valeu-se principalmente para interferir no debate
sobre a cultura brasileira, sinalizando sua visão a respeito da música popular e rebatendo as críticas que se levantavam contra a então incipiente bossa nova.
Os textos compilados por Miguel Jost, Sergio Cohn e Simone Campos em Samba falado recuperam essa militância. O livro reúne 53 crônicas – quatro delas inéditas, as demais publicadas em jornais entre as décadas de 1950 e 1970 – nas quais o Poetinha perfila amigos de cancioneiro e boemia, como Jayme Ovalle, Antonio Maria, Ciro Monteiro, Tom Jobim, Baden Powell, e saúda jovens que davam seus primeiros passos, casos de Francis Hime, Edu Lobo e Marcos Valle.
Além disso, fala de seu processo criativo e combate, com lhaneza mas também com vigor, as legiões puristas da nossa música.
Antonio Cândido afirmou certa vez que, em suas crônicas, Vinicius "conversa como dedilhava o violão". A metáfora é precisa: o registro do cronista-poeta "da pesada e do perdão" não abre flanco para afetações. E se singulariza na farta adjetivação e nos diminutivos que expressam o profundo carinho por aqueles que o cercavam.
Os textos carregam o mesmo despojamento que marcou a vida pessoal de Vinicius, suscitando inclusive olhares enviesados do Itamaraty. E essa postura contrária a qualquer tipo de parolagem está claramente presente em boa parte das crônicas. Em "Elizeth no Municipal", ele ataca o "esnobismo" da música erudita, evocando um dos maiores expoentes do gênero: "Quando Bach escrevia obras de gênio para serem executadas durante a missa, escrevia para o povo que freqüentava as igrejas, e não para os senhores esnobes que sabem (ou será que sabem?) o que é fuga e
contraponto".
Em meio às polêmicas musicais, surgem histórias deliciosas. Numa delas, narrada em "Música popular", ele confirma sua fama de eterno admirador do sexo feminino ao explicar que o fato de torcer pelo Botafogo devia-se à fidelidade ao bairro no qual morou e cujas ruas têm "adoráveis nomes de senhoras – Dona Mariana, Bambina, Tereza Guimarães...".
Em "Le monde musical de Baden", a lembrança é de um episódio vivido em Londres, na companhia do violonista. Os dois devoravam um pé-de-porco, devidamente acompanhado de uísque, quando Vinicius notou que o amigo estava "mal à vontade, como se alma não lhe coubesse no corpo". Na esticada pós-jantar ao bar do hotel, abriram mais uma garrafa do "divino centeio", e Baden enfim confessou: recebera uma proposta, "à base de uma ‘erva considerável’, para se tornar concertista. "Poeta, ele suplicou. Não deixa eu ser concertista não... Eu não quero esse troço não... Eu quero é fazer o
que eu faço, misturar popular com erudito (...), compor com você, escutar o Tonzinho, essas coisas", relata o cronista,que, em seguida, serviu mais duas doses e recebeu do parceiro "um sorriso abissínio, de alívio e bem-estar". Os dois,
então, chocaram seus copos e beberam à amizade."

Marcelo Moutinho
* Resenha publicada no suplemento Idéias (Jornal do Brasil) e em www.marcelomoutinho.com.br

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